terça-feira, 9 de setembro de 2008

EÇA DE QUEIROZ A CIDADE E AS SERRAS




A literatura do sec. XIX me encanta pela minúcia descritiva, pintando realmente um quadro sobre seus personagens e sentimentos, sobre a descrição dos ambientes e os costumes da época. Torna-se, assim, prazeroso nos levarmos para esses lugares e sentirmos a alma dessas pessoas.
Eça de Queiroz é um mestre nesse assunto. Para mim um dos melhores. Mas tenho que dizer que quase todos os escritores do período, assim como a sociedade, castigavam duramente as mulheres, as quais consideram acéfalas ou quase. Que sua maior qualidade era ser boa dona de casa, bonita, rica e virtuosa. Inteligência, sexualidade e independência para Eça, neste livro, nem pensar. Isso é desgastante para as mulheres atuais.
A Cidade e as Serras é narrado sob a ótica do melhor amigo do herói, em tudo diferente dele. Zé Fernandes é amante das serras e da vida tranqüila que elas lhe proporcionam. O estilo do livro é realista.
É relatado com extrema elegância, ironia na dose certa, quase satírica, com belíssimas metáforas, que na maioria são engraçadíssimas também.
O clima, Paris, em seu maior luxo, intelecto e desenvolvimento tecnológico. A tecnologia descrita é espantosamente atual e requintada. Eça estava adiante do seu tempo! Jacinto, o personagem principal, vem de família portuguesa, muito antiga, honrada e o tem como último descendente. O herói, exigentíssimo consigo mesmo e seus pares, mora no 202 em uma casa senhorial nos Campos Elísios. O edifício é equipado com todo o aparato científico-tecnológico. O ambiente em que vive é elegante, caro e, sobretudo culto. Movimenta-se pela mais alta sociedade parisiense como um dos seus ícones, no que tange a refinamento, modernidade e sabedoria. Possui uma biblioteca vastíssima com os tomos que vão dos mais antigos aos mais modernos e avançados. Seu domicílio é uma reunião da alta tecnologia e aparato sem limites com qualquer extravagância imaginável. Seus amigos pernósticos e ilustres retratam o que há de mais sofisticado em uma Paris moderna e saturada. É nesta fase do livro, que as metáforas inteligentes e engraçadas são descritas para delírio do leitor e certeza de riso solto. Depois de anos morando lá, Jacinto começa a adoecer, a emagrecer e se definhar por puro enfado com tanta falsa intelectualidade, excesso de novidades culinárias, literárias, religiosas e científicas. Seu grande amigo Zé Fernandes, que agora vive com ele, o convence a mudar-se, por algum tempo, para os belos e simples ares da serra, que eram o torrão natal de sua família. Ele cede por esgotamento físico e moral. No entanto levam com eles vários caixotes de livros, tapetes, roupas, novo artifício como o telefone e mais uma grande parafernália. A viagem é totalmente desastrosa, com incidentes cômicos e acabam chegando a Portugal só com a roupa do corpo e um velho jornal. Jacinto assusta-se com a rusticidade que encontra, mas aos poucos vai se deslumbrando com a beleza, força, paz, harmonia e fecundidade da natureza no campo, que antes deplorara. Faz diversos amigos dentre a família e a vizinhança, desenvolvendo ao mesmo tempo projetos sociais e agrícolas. Animado e rejuvenescido com a mudança acaba se transformando em um homem seguro, vigoroso e genuinamente feliz. Trocara sua casa moderníssima e artificial de Paris, por um amplo casarão, em estilo português, espartanamente mobiliado. Só o necessário para um solteirão convicto. Seu primo o havia introduzido à simples sociedade portuguesa, onde é recebido como um nobre e augusto personagem. Contudo, com o tempo esse núcleo habitua-se a Jacinto, que passa a ser muito prezado. Apesar disso ainda não conhece a prima do Zé Fernandes, cujo retrato chamara tanto a sua atenção em Paris, por sua beleza e personalidade. Após muitos imprevistos que impossibilitaram o encontro dos dois, a linda Joana se apresenta. Jovem educada e gentil, Jacinto se apaixona perdidamente. Tendo seu amor correspondido casam-se em um breve período de tempo. Agora o casarão de Tormes está completo: poucos móveis imprescindíveis, flores nos jarros, uma esplêndida esposa. Enfim uma família, pois da união entre os jovens nasceram duas lindas crianças que jamais sonhara ter. Somente poucas caixas parisienses foram desencaixotadas. Essa fase da serra é descrita genialmente. Os símbolos usados nessas narrações são belos e nos são desvendados com grandeza e patriotismo. Zé Fernandes, por sua vez, começa a perceber certo aborrecimento com tal bucolismo e paz. Volta para Paris de férias. Logo na chegada aos 202, número famoso da casa de Jacinto, já principia a sentir o mesmo aborrecimento por tudo e por todos, que Jacinto sentira, anteriormente. Paris era a mesma, um pouco mais velha (cinco anos). Os mesmos sorrisos, os mesmos olhares e a mesma comida, que ele considerava ruim. Ao visitar a velha Sorbonne onde estudou choca-se com o abominável comportamento dos estudantes diante de seus mestres. Isso ele não poderia conceber. Depois de inúmeras frustrações sente o mesmo enfado que assolara seu grande amigo. Decide então retornar para sua casa, certo de que Portugal[1], com suas majestosas serras e seu povo caloroso, é um local muito mais aprazível para se habitar. Chegando à estação de trem, reencontra Jacinto, belo e revigorado nem a sombra do aborrecido homem que fora, acompanhado da linda Joana e suas belas crianças que o abraçam e o enternecem com grande amor, que só lá poderia encontrar.
[1] Saudade é a palavra certa

A história perdida de Eva Braun





Angela Lambert
Aqui não escreverei o resumo do livro, mas a impressão que ele me causou. Sob o ponto de vista de curiosidade, talvez seja interessante, todavia a tradução deixa a desejar, pois existem simples erros de português, que poderiam ter sido corrigidos.
A narrativa conta a história de Eva e Hitler de maneira bem casual. No início é agradável, pois fala mais dos hábitos e costumes da Alemanha nas primeiras décadas do século XX, já que não existe material suficiente sobre ela. A mãe da escritora teria idade de Eva, sendo, então possível imaginar a educação, hábitos, costumes e preferências da biografada. Era uma Alemanha arrasada pela primeira guerra mundial. Pobre, com alta inflação, desestimulada pela falta de perspectivas e um tanto acéfala quanto ao governo. Suas crianças, jovens e adultos foram presas fáceis para o regime nazista, ansioso por poder. Ela descreve essa transformação e crescimento do nazismo e o grande e antiqüíssimo preconceito contra os judeus. Não só contra ele, mas também contra os homossexuais, deficientes físicos e mentais, intelectuais e católicos, que foram exterminados covarde e cruelmente durante esses doze anos do terceiro Reich.
Angela é muito didática na narrativa e com isso torna-se bastante repetitiva. Não há como esquecer qualquer passagem, pois ela será recontada diversas vezes.
Eva é descrita, ora como fútil, ora como uma pessoa boa, leal à sua causa e ao seu amante. Hitler é descrito como líder sanguinário e como um ser humano comum: inseguro, nada brilhante, persistente, megalomaníaco, vindo de família pobre e com genes defeituosos, devido ao incesto recorrente na família, invejoso, cruel, todavia gentil com as mulheres, discreto e amável com seus bajuladores. Hitler e Eva conhecem-se, casualmente no estúdio de seu fotógrafo, onde ela fazia revelações fotográficas. Era quase uma adolescente e ele era encantado por meninas jovens, tendo sido amante se sua própria sobrinha! Conquistando-a, facilmente, começam uma relação amorosa. Porém Hitler era um homem com pouquíssima libido, sendo o sexo para ele totalmente indiferente. Isso não incomodava sua parceira, que o amava acima de tudo. Sua família, a princípio, discorda da relação, mas no final usufrui muito dos favores de Hitler. Eva deixa a casa dos pais, indo morar com a irmã num elegante subúrbio. Hitler presentei-a com uma casinha super confortável, com apenas 800 metros de jardim! Em plena penúria alemã! Depois o Fuhrer “adquiri “uma belíssima propriedade (saqueia) e vai morar numa montanha magnífica, para onde leva todo seu quartel general. Para tanto, torna a confiscar as fazendas, casas e hotéis vizinhos. Reforma a casa original, constrói inúmeros bangalôs e até mesmo um hospital. É uma verdadeira vila nazista, onde todos comem e bebem do melhor e ostentam o mais absoluto luxo. A autora alega que Eva não tinha a menor noção do que acontecia no país e que não sabia da origem dos bens! É difícil acreditar. Angela sugere que Hitler se interessa por Eva, pelo fato dela representar o ideal da mulher alemã da época: submissa, desinformada, fiel, cabelos claros e olhos azuis e por não ter antecedentes judeus. Mas ela não foi todo o tempo submissa, apesar de só viver para agradá-lo e mimá-lo e ser mimada. Para mim fica uma forte impressão de que ela amava-o pelo que ele representava: um homem decidido, mais velho, sedutor e PODEROSO. Acho que o poder a seduziu! Ela não exigia a sua presença, mas a grande separação devido ao seu cargo, fez com que ela tentasse suicido mais de uma vez. Eles não foram, realmente pra morrer, mas para chamar a atenção do amante.
A segunda guerra mundial começa de maneira não formal, já com a invasão em si. No primeiro ano ela é precária, segundo a autora, tornando-se, com o passar do tempo violentíssima, destruindo os países invadidos e a própria Alemanha. Esta guerra torna-se mais polêmica pela ótica dos alemães intelectuais e de bom senso que, absolutamente, não concordavam com isso.
Hitler torna-se um homem rico e seu estado maior mais ainda, pois saqueavam as famílias judaicas e dividiam seus bens. Contudo Hitler não quer muitas coisas, pois seu estilo é espartano. Todavia comete a imoralidade de deixar que seus oficiais fiquem com que quiseram. Com sua própria família não é pródigo e no início, também não o é com Eva, que não ficava suplicando por bens. Eva, ao longo do seu relacionamento, se mostra vaidosa, exigente (seus vestidos e sapatos são feitos em Paris e na Itália, onde tem livre acesso pela grande amizade com Mussolini). Com o início da derrocada do terceiro Reich, é construído um enorme bunker para que ele possa se abrigar. Eva e família continuam em festas e desfrutando de inúmeras viagens de férias. Esquiando, nadando, fazendo exercícios ao ar livre, pois esporte era seu grande forte e talvez pudesse ter sido uma atleta profissional. Hitler era um covarde. Nunca visitou um campo de batalha, a fim de levantar a moral de seus jovens soldados, com faziam Churchill ou Lênin. Tampouco nenhum campo de concentração, segundo a autora. Depois de inúmeros bombardeios sobre a Alemanha as tropas russas aproximam-se de Berlim e do bunker. Eva decidiu juntar-se a ele, para animá-lo, levando dezenas de vestidos caros e sapatos Ferragamo. Quando os inimigos, praticamente, já estão em cima deles, Hitler concede a saída de quem quiser, e a maioria o quer. Este fato magoou-o muito. Distribuiu cápsulas de cianureto para que não fossem aprisionados pelos russos. No final ele e Eva fecham-se numa sala. Eva toma o cianureto, pois não quer ser um cadáver assustador, e ele dá um tiro na têmpora, morrendo os dois sem o sofrimento que impingiram a milhões de pessoas. Seus corpos foram queimados, mas não totalmente desfeitos. Essa é a grande prova de suas mortes. Uma história de amor das mais sinceras e macabras que já houve na humanidade!

Defying Hitler por Sebastian Haffner


Sebastin Haffner


Quando o autor morreu em 1999, aos 91 anos, seu filho descobriu este manuscrito redigido em 1939, Inglaterra, mas abandonado por causa da eclosão da segunda guerra mundial.
Mostra o crescimento do nazismo na Alemanha entre 1914 até o fim da segunda guerra e como este novo regime seduziu os adultos e jovens alemães. Porém, muitos intelectuais e cidadãos comuns ficaram absolutamente indignados com tal método massacrante, que não só eliminou todos os partidos de oposição , mas matou, enlouqueceu, perseguiu, e torturou uma gama enorme de pessoas inteligentes, brilhantes e honradas. É a história de um duelo entre o ainda menino de sete anos e Hitler.
O sistema deles era apavorante, porque matavam católicos, judeus, intelectuais, de maneira afrontosa, com armas e tanques mas, o faziam sorrateiramente, de maneira que os alemães nada notassem no momento seguinte. Na superfície, na rotina do dia a dia, tudo corria como se nada tivesse ocorrido. Estou me referindo ao período entre as duas guerras mundiais. A Europa assistia a tudo, mas nada fazia.
Havia muitos campos de concentração, para onde eram enviados os judeus e cidadãos não simpatizantes do regime. Lá eram colocados para trabalhos forçados, experiências ou eram assassinados. Houve, também, a loucura e a catástrofe da inflação de 1923, os loucos esportes nazistas de 1920, a polícia fechando o baile de carnaval de1933, a AS invadindo uma biblioteca especializada em leis, a procura de judeus, as pessoas desviando-se das tropas embandeiradas da SA, que foi precursora da SS.
Hitler oferecia tudo a todas as pessoas, o que, naturalmente, lhe rendeu uma vasta legião de seguidores entre os ignorantes, desapontados e despossuídos. Os mais esclarecidos não tinham nem partido, nem bandeiras, nem alternativas para clamar.
Uma vez que a violência, inerente do ser humano, é despertada por tais horrores ela se torna fácil de ser aceita e se torna até em um dever cívico. Aí houve a sistemática infecção de uma nação, mas muitos alemães ainda tiveram coragem para resistir. O autor cita que o sentimento dele é como se o seu mundo tivesse desaparecido sem deixar nenhum traço. Partidos políticos “desapareciam”, pessoas “suicidavam-se”. Os jornais listavam nomes de quarenta cientistas e escritores ilustres que haviam sido desterrados e privados de sua cidadania. Se você se recusasse a se tornar um nazista era diariamente submetido às mais terríveis humilhações, com sérias conseqüências comportamentais e psicológicas. O pessimismo contamina muitos alemães, ou , ao contrário, um sentimento de superioridade. A histeria sobre o “pensamento alemão”, a “masculinidade alemã”, a “constância alemã”, nauseavam-no ,agora.
.O livro termina em outubro de 1933, quando Sebastian está prestes a deixar o país e ir para o exílio, já que se encontra só, por causa da dispersão de seu grupo de amigos.
Sebastian Haffner nasceu em 1907, Berlim, onde estudou advocacia e se formou em 1933, antes de ir à Paris. Retorna a Berlim em 1934 e deixa a Alemanha em 1938, indo para a Inglaterra, onde trabalha e escreve. Volta para a Alemanha em 1954. Morre em 1999. Defying Hitler foi traduzido para o inglês por seu filho Oliver Pretzel.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

O Processo de Franz Kafka¹





Alguém certamente havia caluniado Joseph K. pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum.”
Nunca havia lido Franz Kafka e quando iniciei a leitura desse livro tive a impressão de estar lendo Crime e Castigo de Fiodor Dostoievsk, não só pelo conteúdo, mas pela forma. Kafka, certamente, foi influenciado por esse grande escritor.
O início da narrativa do livro é totalmente caótico, lembrando vivamente um pesadelo, quando você quer encontrar alguma coisa e não sabe o que e quando a encontra não sabe o porquê. Os diálogos chegam a ser até pueris, de tão surrealistas e exaustivamente repetidos. Josef K., um alto funcionário de um banco, acorda na manhã de seu trigésimo aniversário, em uma pensão onde morava e após irritar-se por seu café da manhã não ter sido servido, é abordado por guardas que determinam sua detenção, mas não sabem relatar-lhe o porque dela, qual seria o seu delito. Irritado e abismado pela imposição vê-se obrigado a se dirigir a uma autoridade que lhe dê maiores explicações. Nenhuma é oferecida. Tendo que ir ao trabalho argumenta se estaria detido, mas para sua incredulidade, não está absolutamente detido, somente notificado que corre um processo contra ele. A lei dirá o que ele deverá fazer ou não, mas ele não tem como saber a causa e se defender. Terá que esperar durante o tempo que ela, a lei, quiser e prover. O livro discute exatamente a desumanização da burocracia monárquica da região do Danúbio (1914, quando inicia sua obra).
Nosso herói, desorientado, procura ajudas diversas, mas sempre de pessoas ao seu redor, pouco influentes. Chega a entrar em um tribunal popular, um local dentro de um edifício residencial, totalmente deteriorado, e seguindo a deriva, encontra uma escada que o leva a uma sala repleta de pessoas modestas, algumas também são acusadas como ele, e outras fazem parte de um júri ridículo. O local é sem ventilação, quente, poluído, decadente sujo e claustrofóbico. Parece para o leitor, ser uma central sindical de baixíssima categoria. Essa sensação angustiante, indigna, dúbia e claustrofóbica será expressa até o final do livro. Os inquéritos do processo são breves e repetidos várias vezes, não indicando hora, somente o local. O réu está sempre à disposição da lei. Numa manhã de domingo depois de muita espera, K. é questionado por um juiz se é o pintor de paredes. “Não, sou procurador de um grande banco”, responde K. A partir daí, se desenrola um verdadeiro TEATRO DO ABSURDO, pois não sendo o pintor de paredes, não tem razão para continuar lá, é a pessoa errada, mas ele não leva isso em consideração e prossegue numa defesa do NADA, sem QUESTIONAR nada, sem procurar IDENTIFICAR seu acusador. Não diz seu nome e se deixa interrogar! Além do irracional da situação o leitor se sente indignado com seu comportamento de se deixar levar! Ele se considera incorruptível, mas tenta seduzir algumas mulheres, entre elas sua vizinha de quarto, Senhorita Bürstner, por quem se sente muito atraído, para que o ajudem a encontrar uma solução, em vão. O personagem é, na maioria das vezes, descrito como um ser humano infantilizado, que acredita em qualquer coisa. Para a democracia contemporânea seu comportamento nos frustra e nos irrita. O tribunal quer provas de sua inocência, mas como pode oferecê-las se não sabe qual é seu delito? Josef, com tantos desmandos, vai tornando-se um homem dócil, enfraquecido, vulnerável, sem nenhum pragmatismo, é apenas conduzido, o que não ocorre no início do livro. Josef, depois de um longo interrogatório, perde o controle de sua mente e de sua aparência. Despenteado, desorientado e aturdido vê-se finalmente livre para sair à rua, mas se sente doente. “Será que por acaso seu corpo queria fazer uma revolução, preparando um novo processo, já que ele suportava o antigo com tão pouco esforço?” pensa.
Josef acaba se recuperando e a suspeita de que os altos funcionários são corruptos é cada vez mais exacerbada. Numa noite, quando saia do escritório, ouve gritos e gemidos. Num cubículo, testemunha o espancamento dos dois guardas que o prenderam, por um homem, espancador por ofício, que apesar de ter sido subornado por Josef com dinheiro para terminar com a barbárie, se nega a deixá-los, simplesmente por que é pago para espancar, então espancará até a morte, se preciso!
Sabendo dos processos contra K., seu tio Karl vai visitá-lo, pois tendo sido seu tutor, se acha responsável por ele, aconselhando-o a contratar o advogado Huld, que fora seu amigo de juventude, para ajudar a preservar o bom nome da família. Agora temos outras cenas surrealistas. Huld é um velho decrépito, doente, safado, que recebe os clientes em seu humilde quarto, pois não pode sair da cama, tendo uma enfermeira sedutora, Leni, que dorme com ele e seus clientes! Kafka pontilha este livro com muitas mulheres fáceis e desonradas. Sua opinião com relação às mulheres é machista ou irônica. O próprio Josef pondera “Faço a corte a ajudantes, pensou com espanto; primeiro a senhorita Bürstner, depois a mulher do oficial de justiça e finalmente esta pequena enfermeira...” Josef K. desiludido com o rumo das coisas, pois “Não conseguia mais deixar de pensar no processo. Já tinha refletido com freqüência se não seria bom redigir um documento de defesa e apresentá-lo ao tribunal.” Nesse contexto é inútil um réu se defender, pois uma vez acusado será condenado. Essa é a opinião de um paupérrimo e altivo pintor retratista, apresentado a K., pois se supõe que ele tenha alguma influência na corte, já que desde os tempos de seu pai, sua família retratava os juízes do país. K. deixa-se proteger pelo pintor, a princípio, mas o dispensa, não sem antes ter-lhe comprado três quadros que não queria e não gostava. O processo corre há meses, vagarosamente, entorpecendo o réu e mantendo-o sempre ligado à extensa e morosa burocracia, sem espaço para trabalhar ou se concentrar em seu benefício! O leitor se vê atordoado, atônito. Josef, agora descontente com o andamento das coisas, retira, a duras penas, a representação do advogado, resolvendo defender-se sozinho. “Embora K. confiasse na possibilidade de fazer tudo isso, a dificuldade para redigir a petição era esmagadora.” Os juízes são influenciáveis e as soluções dos casos não podem ser publicadas. É um regime governamental infernal, que se opõe a defesa de Josef. Sem espaço mental para trabalhar e produzir como era sua rotina anterior, negligencia sua clientela que, sem ser atendida, passa para o diretor adjunto do banco, o beneficiando com o estado deplorável de K.. As pessoas descritas na obra quer sejam importantes ou muito humildes, se comprazem em humilhar e espionar seus semelhantes mais fracos ou envelhecidos. Chega ao banco um importante cliente italiano e é confiado a Josef levá-lo a uma catedral para que ele aprecie o estilo arquitetônico e as obras de arte. K. irá antes, encontrando o italiano depois, já dentro dela. Ocorre que isso é uma armadilha. Na verdade ele se depara, depois de horas, com um sacerdote, capelão do presídio, que fazendo parte do júri o criva de perguntas, informando que o processo vai mal e provavelmente será julgado culpado. “... É um equívoco. Como é que um ser humano pode ser culpado? Aqui somos todos seres humanos, tanto uns como outros”, argumenta Josef. Chegando ao final temos um personagem completamente desconstruído. Na véspera de seu trigésimo primeiro aniversário, Josef K. encontra-se completamente indiferente ao seu destino. Decorrido um ano, sem nenhuma produção profissional ou pessoal, entorpecido e alquebrado, vestido de preto (luto pelo seu fracasso?) não se rebela contra os dois senhores, pessoas baratas, de cartolas “irremovíveis”, que o arrastam à luz calma do luar, até seu destino final. Conduzido a uma pedreira e colocado sobre uma pedra, seu leito de morte, seu olhar incide sobre a janela iluminada de uma casa. Uma pessoa se projeta e estica os braços mais para frente. “Quem era? Um amigo? Uma pessoa de bem?... Havia ainda possibilidades de ajuda?... A lógica, na verdade, é inabalável, mas ela não resiste a uma pessoa que quer viver. Onde estava o juiz que ele nunca tinha visto? Onde estava o alto tribunal o qual ele nunca havia chegado? Ergueu as mãos e esticou todos os dedos.” Esfaqueado na garganta ainda viu o momento da decisão.
“Como um cão- disse K.”
“Era como se a vergonha devesse sobreviver a ele.”
Nosso herói ou anti-herói questiona o poder repressivo, contudo se submete a ele e segue para o seu assassinato sem qualquer resistência.


Essa inigualável história, considerada um dos maiores romances do século passado, ficou sendo um fragmento, pois suas partes separadas foram reunidas e só depois publicadas. Existe a possibilidade de que o romance tenha sido baseado em fatos reais ocorridos contra um deputado de direita, denunciado como informante da polícia secreta de Praga, junto ao governo vienense em 1914. O estilo realista de Kafka é sufocante, deixando o leitor refém de sua narração.

Franz Kafka nasceu em 3 de julho de 1883, em Praga, cidade que na época pertencia à monarquia austro-húngara. Filho de um abastado comerciante judeu, Kafka cresce sob as influências de três culturas: a judaica, a tcheca e a alemã. Formado em direito, trabalhou sempre em cargos burocráticos. Solitário, com a vida afetiva marcada por irresoluções e frustrações, Kafka nunca atingiu fama ou fortuna com seus livros, na maioria editados postumamente.A Metamorfose (1916) narra o caso de um homem que acorda transformado em gigantesco inseto; O Processo (1925) conta a história de um certo Josef K., julgado e condenado por um crime que ele mesmo ignora; n'O Castelo (1926), o agrimensor K. não consegue ter acesso aos senhores que o contrataram. Essas três obras-primas definem não apenas boa parte do que se conhece até hoje como "literatura moderna", mas o próprio caráter do século: "kafkiano". Autor de várias coletâneas de contos, Kafka escreveu também a avassaladora Carta ao Pai (1919) e centenas de páginas de diários. Deixou inacabado o romance Amerika. Morreu no dia 3 de junho de 1924, num sanatório perto de Viena, onde internara-se com tuberculose. Desde então, seu legado -resgatado pelo amigo Max Brod- exerce enorme influência na literatura mu
[1] Kafka nasceu em Praga no dia 3 de julho de 1883, Boêmia, (hoje República Tcheca). Formado em direito, numa deixou de escrever, apesar da tuberculose. Faleceu no sanatório de Kierling em 1924, aos 41 anos. Encontra-se enterrado no cemitério israelita de Praga. Atualmente é considerado um dos maiores escritores de século XX.

The Magic Barrel de Bernard Malamud





Bernard Malamud [1] 1958[i]




Este é um livro de contos[2], mas não qualquer livro. Malamud é um famoso escritor americano, que aborta temas judaicos. Não é uma leitura fácil, muito menos amena, todavia tem um humor ácido, sarcástico e ao mesmo tempo compassivo e profundo, mostrando a vida e as relações humanas: ora o sentimento de culpa ora a busca da felicidade.
The First Seven Years – Feld, um judeu pobre e diligente, sonha com um futuro melhor para sua única filha. Graduar-se em uma faculdade, estudar, crescer. Ela, porém prefere ler os livros emprestados do assistente de seu pai, Sobel, um refugiado de guerra como Feld, que é sapateiro. Os livros são cobertos por anotações interessantes feitas por ele, homem mais velho e vivido.
O pai, fingindo inocência, apresenta-lhe um rapaz pobre, todavia ávido de saber, cursando MBA, apesar de todas as dificuldades. Eles saem, mas não se harmonizam. Quando Sobel sabe do arranjo some do trabalho, deixando uma carga pesada demais para o velho judeu. Quando Feld não agüenta mais a situação terrível em que se encontra vai visitar o assistente, implorando para que ele volte, mas Sobel é irredutível. Não voltará, pois ama Myriam e é correspondido. O amor nasceu dos livros e das anotações, que mostraram a sua alma para a amada. Depois de muita relutância, pois Myriam tem apenas dezenove anos e quem sabe um belo futuro pela frente, ele recua. Sobel volta ao trabalho, martelando, vigorosamente, as solas dos sapatos para o seu grande amor!
The Girl of My Dreams – Um jovem escritor tenta destruir-se, após várias tentativas de publicar seus trabalhos. Desesperado, ateia fogo nos seus manuscritos, que se queimam completamente. Sem comer e sem sair do seu quarto está quase moribundo. Um dia sua senhoria coloca um jornal sob a porta na tentativa de animá-lo. Ele reluta em pegar o jornal, mas, finalmente o faz, lembrando-se que já havia escrito para uma coluna do Globo. Vai direto à mesma coluna e lê um conto que é a sua própria história: uma jovem escritora desiludida, também queima seus manuscritos. Identificando-se com ela envia-lhe uma carta cheia de compreensão e afinidade. A partir daí, surge uma correspondência que lhe devolve a vontade de viver. Ele, finalmente, deseja conhecê-la. Ela não. Acha mais prudente que se comuniquem apenas por cartas. Seria mais carinhoso e imaginativo. Cedendo aos pedidos, marcam um encontro numa livraria. Ele já imagina pela sua voz suave e meiga, como ela seria. Entrando na hora exata no local combinado decepciona-se, pois se encontra vazio, a não ser pelos empregados e uma senhora, sentada à mesa, fazendo pesquisas. Depois de muita espera, conclui que a “senhora é a menina de seus sonhos”. Constrangido aproxima-se dela, que imediatamente se identifica como sua correspondente. Apesar de todo o sonho amoroso desabado, ela é inteligente e sensível, dando-lhe ânimo para voltar a escrever e a viver!
Angel Levine – Um judeu, empobrecido e arrasado pela perda de seus dois filhos e pela doença gravíssima de sua mulher, acredita que é um homem que crê e tem fé inabalável em Deus. Mas não se conforma com o triste destino preparado para ele e se acha injustiçado. Encontrando, no Brooklin, com um corpulento homem negro, limpo e pobre e este se identificando como um anjo negro de Deus oferece-lhe ajuda para seus graves problemas. Contudo Manischevitz não pode acreditar que exista um anjo negro e pobre. Dando-lhe as costas, parte para sua casa. Porém sua vida piora cada vez mais até o insuportável. Lembrando-se do anjo volta pela segunda vez a procurá-lo, já que na primeira não ousou falar-lhe pelo completo ceticismo. Agora, lhe implora por ajuda, mesmo não acreditando que ela venha. Entretanto, ao chegar a sua casa, encontra sua esposa, alegre e disposta. Desde então, as coisas passam a melhorar em sua vida! Que maravilhoso crente que ele era!
The Magic Barrel – Em New York, num modesto e minúsculo apartamento atulhado de livros, vive Leo Finkle, um estudante rabínico, prestes a se formar. Aconselhado por um conhecido, deveria casar-se para ter sua própria congregação. Ele, todavia, nunca pensara no assunto e vivendo longe dos pais, seus únicos parentes, não sabia o que fazer. Depois de dois dias atormentados, resolve recorrer a um matchmaker (casamenteiro), Pinye Salzman, um judeu muito magro, com tristes olhos, mas com uma aparência dígna, apesar do forte cheiro de peixe, que adora comer, exalado pelo seu corpo. Carregando um portfólio, encontra-se com Leo em seu modesto cômodo. Leo, constrangido, adianta-se em lhe dar explicações do porquê dessa forma antiga e convencional de arranjar uma noiva. Muito trabalho e estudo e nenhuma vida social. Nosso matchmaker apresenta-lhe vários “dossiês” com as fichas completas das candidatas a noivas. Em todas elas Leo observa uma armadilha, que Pinye tenta esconder-lhe. Nenhuma o agrada, entretanto, resolve encontrar-se com uma delas, que faz uma série de perguntas muito pertinentes e é ela quem desiste de qualquer acordo. Tal situação mostra-se embaraçosa para Leo, porque passa a se ver como realmente é: um jovem sem amor por ninguém, exceto seus velhos pais, nem por Deus. Também não é amado por qualquer pessoa. Resolve dar um fim aos seus planos. Desiludido, magoado pensa em arranjar uma namorada sem ajuda, uma pessoa a quem ele possa amar e depois casar. Sem tempo disponível o plano fracassa, mas não as investidas de Salzman. Um dia, mesmo sabendo que não é bem vindo, larga apressadamente mais algumas fichas contendo fotos de outras prováveis noivas. Leo, enfurecido, nem olha para o tal envelope. Os dias passam, mas nada muda em sua vida e ele resolve dar uma espiada no objeto de seu desprezo, agora coberto de poeira. Ao abrí-lo, junto com as fotos, encontra um simples instantâneo de uma bela e jovem moça, com lindos olhos azuis e uma aparência já conhecida do fundo de sua alma. Quanto mais o olha mais se sente atraído pela jovem. Compulsivamente corre em busca de Salzman, que assustadíssimo vê a foto e roga para que ele se afaste dela, estava ali acidentalmente, pois é um caso perdido, é um demônio. Apaixonado exige saber de quem se trata. Retrucando desajeitadamente, revela que é sua própria filha, indigna de um sábio e jovem rabi. Correndo, desaparece do apartamento. Não obstante, Leo não consegue esquecê-la e se convence de que ela é a mulher de sua existência, portanto poderia ajudá-la a encontrar o caminho certo e que isso o redimiria perante Deus. Após muitos insucessos consegue achar o sumido Pinye e o trato é fechado. Ele conhecerá sua menina Stella. Deixando a cafeteria ele é afligido por uma tormentosa suspeita de que Salzman havia planejado tudo desde o começo. Dias depois, em uma noite de primavera, ele se prepara para encontrar sua amada, sob a luz de um poste, numa determinada esquina. Ela o esperava timidamente. Ao avistá-la, tão linda, percebeu que aqueles lindos olhos eram iguais aos do pai, azuis e cheios de desesperada inocência. Leo corre em direção a ela com um maço de flores, Stella seria sua redenção! Nas proximidades, um magro judeu cantava orações para os mortos!

[1] Foi um dos ganhadores do prêmio Pulitzer de litertura
[2] Magic Barrel ganhou o prêmio National Book Award
[i] The Magic Barrel é um dos livros mais inteligentes que já li.

Everyman de Philip Roth




Estamos num cemitério judaico completamente abandonado, nos Estados Unidos. Somente um caixão e poucas pessoas. O corpo já desceu à sepultura e chega o momento de homenagear o morto. Primeiro fala a filha; explica o porquê da escolha do cemitério. Foi fundado por seu bisavô, quando chegou à América como imigrante. Homem dotado de grande sensibilidade, inteligente, preocupado com o destino dos demais imigrantes judeus, resolveu fazer esse empreendimento, que anos após sua morte se deteriorara. Lá estão seu bisavô, seus avós e ela tem certeza que seu pai gostaria de repousar, eternamente, com seus entes mais queridos. A cena continua com palavras de seu irmão, de seus dois filhos do primeiro casamento, de sua ex-esposa e de sua enfermeira. Estão presentes também pessoas que trabalharam com ele.
Discursam sobre seus familiares - avós, pais e seu querido irmão mais velho, seu ídolo. Comentam sua infância feliz ao lado do irmão, da amorosa mãe e do pai cuidadoso e compreensivo e de seu encantamento, desde a infância, pelas engrenagens de relógios. Enfim, era uma família feliz. O personagem principal é descrito como um menino muito criativo, atento a tudo, hábil e inteligente. Seu único problema parecia ser uma cirurgia de hérnia, durante a qual ele se apavora com as lembranças de pessoas mortas ou que estão para morrer. A morte começa a rondar o menino. Jovem e com um belo futuro pela frente casa-se e tem dois filhos. Contudo o casamento mostra-se contrário às suas expectativas de vida que seria um casamento sólido, único e feliz. Ocorreu, então, após muita reflexão e pesar o divórcio. Os meninos ficam com a mãe e ele apenas lhes pede perdão por ter sido um ser humano comum e falível. Afinal, conhece uma jovem encantadora e grande parceira, mas ele é sempre atormentado pelo sentimento de morte eminente e infelicidade, que não revela a ninguém. Com o passar do tempo, vê-se obrigado a recorrer a um analista. Sintomas, supostamente psicológicos, o fazem emagrecer e parar de trabalhar. Internado em um hospital, descobre que tem apendicite supurada e diversos pontos de infecção. No hospital lembranças da morte de seu tio, de seu pai quase morto pela apendicite, e agora ele com o mesmo problema, não o deixam descansar Após um mês de hospital retorna a sua casa. A morte ronda o homem. Todavia, a visita de seu querido irmão lhe traz alento e mais determinação. Vinte e dois anos se passam após esses fatos, agora ele segue feliz e saudável ao lado de sua amada.
Contudo, num terceiro casamento desastroso, seu querido pai adoece e nosso personagem se vê na contingência de visitá-lo assiduamente, quando ele próprio, sofreu uma gravíssima intervenção cirúrgica no coração. Sua terceira hospitalização. A morte continua rondando o homem. Cercado de problemas pessoais e sentimentais conseguiu reiniciar sua vida novamente, apaixonando-se por sua bela e eficaz enfermeira ruiva. O falecimento e o enterro de seu velho pai, realizado na mais pura tradição judaica, transtornam profundamente nosso herói. Sendo incrédulo, considera o ato bárbaro. Ele apresenta mais nove anos de vida saudável e estável...

Advem porem a quarta cirurgia. Desta vez nos rins em decorrência de sua pressão alta. Está com 65 anos. Aposentado muda-se para um elegante condomínio de idosos, à beira mar e começa a pintar. Sua amada filha divorcia-se e o espectro das torres gêmeas destruídas em 2001 faz-se presente. No mesmo ano da quarta intervenção, ocorre outra. Diversos infortúnios se sucedem devido a sua saúde super fragilizada, em descompasso com sua vida anterior e interior de homem bem sucedido e operante. Eram tantas as vicissitudes que ele elabora um pequeno plano mental para superá-las. Sua própria filha vê-se abatida pelas transformações ocorridas com seu amado pai. Essas hospitalizações fizeram dele um homem mais solitário e menos confiante. A morte agora sorri para o homem. Em certo momento, aulas de pintura para outros desvalidos como ele foi sua meta. O sucesso é evidente, mas ele é forçado a parar. Então, lembranças de como seus dois filhos foram inclementes e perversos com ele, o deixa amuado e ao mesmo tempo enfurecido, pela falta de clemência e compreensão da mente humana. As pessoas acometidas de doenças constantes têm vergonha de se sentirem frágeis. Sua combatividade torna-se uma enorme tristeza. Agora ele tem setenta e um anos, tem solidão e tem desventura.
Ao longo dos anos ele manteve um contato amistoso e caloroso com seu irmão, Mas como passar de suas internações e doenças ele acaba por odiá-lo, pelo simples fato de ser saudável. A vida já é sua obsessão, assim como a morte, pois a morte é simplesmente morte. A gravidade de uma enfermidade pode corroer a alma de um sensato. Sua confiança na arte de pintar desaparece e a identificação com ela também. Passa a desacreditar em seu potencial artístico por puro sofrimento. Ele é e gosta de ser reconfortado por sua filha, pois sê-lo não é coisa pequena, é um momento de paz e carinho na vida de um homem que passa a viver de recordações do passado. Das mazelas de seus casamentos mal sucedidos, de suas mentiras, que quase se tornam verdades a seus olhos, de suas compulsões, com desdobramentos arrasadores, suas traições e as conseqüências delas. Sem pintar, vivendo de reflexões não consegue preencher sua vida. Observar as ondas do mar, relembrando a infância confiante e cheia de sonhos tampouco o satisfaz. A morte volta a sorrir para ele.
Ele se sente falido intelectualmente, tendo sido um vitorioso na idade adulta. Não se sente feliz no condomínio. Agora, sem raízes, está num lugar em que não pode recorrer a sua antiga criatividade. Nada mais lhe interessa. Reconhece o erro de ter saído de um grande centro e planeja uma volta impossível, ao lado da filha. Sua segunda esposa adoece gravemente, o que inviabiliza seu retorno. Seu sofrimento aumenta com a desesperança e o seu total distanciamento da família, motivados por sua vontade e comportamento. Restou-lhe lembrar-se de sua juventude, seus amores, seus companheiros de trabalho que também estão morrendo ou doentes. Sente-se diminuído e transformado em alguém que não quer ser! A desesperança abate-se sobre ele e o move para o cemitério onde seus pais repousam e junto aos seus ossos encontra conforto. Logo mais, após sua última operação, ainda sonhando com o verde mar e a maravilhosa terra, como jóias a serem vistas pela lupa de joalheiro de seu pai, acaba sua vida. A morte enlaça-se ao nosso herói, um homem comum.
Biografia
Em 1997 Philip Roth ganhou o Prémio Pulitzer com Pastoral Americana. Em 1998 recebeu a Medalha Nacional de Artes da Casa Branca e em 2002 o mais alto galardão da Academia Americana de Artes e Letras, a Medalha de Ouro da Ficção, anteriormente atribuída a John dos Passos, William Faulkner e Saul Bellow, entre outros. Ganhou duas vezes o National Book Award, o PEN/Faulkner Award e o National Book Critics Award.Em 2005, A Conspiração Contra a América recebeu o prémio da Sociedade de Historiadores Americanos pelo “excepcional romance histórico sobre um tema americano relativo a 2003-2004” e foi nomeado como Melhor Livro do Ano pela New York Times Book Review, San Francisco Chronicle, Boston Globe, Chicago-Sun Times, Washington Post Book World, Times, Newsweek e muitas outras publicações periódicas. A Conspiração Contra a América conquistou o W.H. Smith Award para o Melhor Livro do Ano, fazendo de Roth o primeiro escritor, nos 46 anos de história do prémio, a conquistá-lo duas vezes.Em 2005, Roth tornou-se também o terceiro escritor americano vivo a ter a sua obra publicada numa colecção completa e definitiva pela Library of America. A publicação do último dos oito volumes está prevista para 2013.Recentemente recebeu dois dos mais prestigiados prémios do PEN: em 2006 o PEN/Nabokov e em 2007 o PEN/Saul Bellow de Consagração na Ficção Americana, dado ao escritor cujo apuro ao longo de uma carreira sustentada o coloca ao mais alto nível da literatura americana.

1808 de Laurentino Gomes


Esse livro, escrito pelo jornalista Laurentino Gomes[1], sobre a vinda da família real portuguesa para o Brasil é, ao contrário do que se possa esperar, muito divertido, escrito numa linguagem acessível e de leitura agradável.
Na manhã de 29 de novembro de 1807, a população portuguesa informou-se de que a família real e toda a corte, com seus bens, dinheiro, pratarias, móveis etc., estavam fugindo de Napoleão, que ameaçava conquistá-los, e vindo para o Brasil sob a proteção de Marinha inglesa. Em Portugal, um dos países mais atrasados da Europa, vigorava o regime de monarquia absoluta. Sem o rei o povo estava completamente desprotegido. O plano já vinha sendo arquitetado ao longo de quase três séculos e agora chegara a hora de partir. D. João era príncipe regente, pois sua mãe, doente mental, não podia reinar e seu irmão mais velho havia morrido. Tímido e inseguro, não teve outra opção. Foi uma chantagem, se aderisse a Napoleão a Inglaterra liquidaria Portugal e possivelmente tomaria suas colônias. Sem o Brasil Portugal não era nada. Daqui eram levados todos os bens necessários para sua sobrevivência. D. João veio “procurar no morno torpor dos trópicos a tranqüilidade ou o ócio para que nasceu”.
D. Maria I de Portugal e George III da Inglaterra tinham, além da loucura, outra peculiaridade em comum: a dos reis com trono. Com a subida de Napoleão como imperador da França, muitos países foram conquistados, pois ele foi um gênio militar. Com novas conquistas seu exército era gigantesco e seu general frio e metódico. Para D. João não havia outra saída. O embaixador português Luis da Cunha escreveu que Portugal não passava de “uma orelha de terra”! Escreveu também Sir Charles Oman “É surpreendente que uma nação, habituada desde os tempos mais remotos a se defender repetidas vezes com sucesso de inimigos mais fortes, desta vez tivesse se rendido sem disparar um único tiro”.
D. João assinara um acordo secreto com a Inglaterra, no qual em troca da proteção de sua marinha, abriria os portos do Brasil às nações estrangeiras, fechados durante trezentos anos, ficando completamente isolados do mundo.
O império português achava-se totalmente decadente. Sua Marinha de Guerra possuía 30 navios velhos em contrapartida ao da Inglaterra que tinha 880 navios. O país era atrasado e muito religioso, o que impedia seu desenvolvimento. A vida social era exclusivamente religiosa. O resto da Europa estava sem limites para o desenvolvimento. Na Inglaterra ocorria a Revolução Industrial, que mudou o mundo. Em 1776 a repercussão da Independência americana influenciava todas as nações e a Revolução Francesa, em 1789, redesenhava a Europa. Esse foi um dos períodos mais ricos da História. Portugal estava à margem dos acontecimentos, sem cérebros e dependendo cada vez mais de escravos para sua manutenção como nação. Sua economia era extrativista e mercantil. Os nossos produtos, madeira, ouro etc. iam diretamente para a Inglaterra. A igreja, por seu lado, mantinha os reis, nobres e seus vassalos submissos a ela. Portugal foi o último país a abolir os autos da Inquisição. Era uma terra nostálgica e sem futuro. Faltava manufatura e não se produziam roupas e alimentos, mas eles viviam de maneira opulenta graças ao ouro que afluía do Brasil. Em 1729, devido à descoberta das jazidas de diamantes, o fluxo de riquezas aumentou. Tudo para eles, nada para a colônia. Essa opulência não resultou em cultura! Em 1775 uma catástrofe natural arruinou ainda mais o país e sua maravilhosa Biblioteca Real virou cinzas. O Marquês de Pombal foi encarregado de reconstruir Lisboa. Ele redesenhou a cidade, a modernizando com mão de ferro. Subjugou a nobreza e reduziu fortemente o poder da igreja. Essas reformas terminaram com a morte de D. José I, em 1777. Sua filha D. Maria I poria tudo a perder, pois era carola e Pombal caiu no ostracismo. O país voltou a ser rural e atrasado, dependente das riquezas das colônias.
Portugal era o maior parceiro da Inglaterra, dependendo dela até como Estado independente. Foram os cruzados ingleses que ajudaram o primeiro rei de Portugal a conquistar o porto do rio Tejo, em 1147 e a expulsar os mouros. Os casamentos entre nobres dos dois reinos foram benéficos, pois a Inglaterra também se valeu deles em momentos difíceis.
No dia da partida, a bordo da nau Príncipe Real, estavam D. João, sua mãe, e dois herdeiros do trono, príncipes D. Pedro e D. Miguel. O restante foi distribuído em três navios. Mais quarenta barcos acompanhavam essas naus. Quinze mil pessoas vieram com a família real, entre elas nobres, conselheiros, militares, médicos, bispos, padres, advogados, comerciantes, pajens, cozinheiros e as respectivas famílias!
Lisboa era uma capital exótica e oriental, repleta de mercados chineses, árabes, indianos e negros africanos. Quando a família real partiu, relatou Lord Strangford, “A capital encontrava-se num estado de tristeza tão sombria que era terrível em excesso para ser descrito”. D. João e Carlota Joaquina tinham oito filhos. Caso houvesse um naufrágio, três gerações da Dinastia de Bragança seriam perdidas. Desprovido de todos os seus bens Portugal ficou à própria sorte. Tudo foi raspado de seus cofres. Entre os caixotes esquecidos pela pressa, ficaram os sessenta mil livros da Biblioteca Real e toda prataria das igrejas, derretida pelos invasores. Os preciosos livros chegariam mais tarde, despachados por Santos Marrocos. Marrocos viria ao Brasil para zelar por esses livros e sua correspondência serviria de fonte para os historiadores estudiosos dessa época. Ele narraria o atraso, a sujeira e a promiscuidade da nova capital. Ele seria testemunha das grandes mudanças que ocorreriam no Brasil, durante a permanência da corte portuguesa.
Em 1807 a esquadra levou cem dias, com escala em Salvador, para atravessar o Atlântico. Uma viagem repleta de desafios. As naus eram anti-higiênicas apinhadas de gente, sem espaço, água, comida e a peste bubônica ao encalço deles. Lord Strangford foi o articulador da fuga da família real para o Brasil. No Equador, pela calmaria, as naus de D. João e Carlota Joaquina levaram dez dias para percorrer trinta léguas, sob um sol abrasador. Um relato diz que “homens, mulheres e crianças formavam juntos o mais desolador dos quadros”. Com a chegada deles temos o início de um Brasil independente.
Em Lisboa fora traçado o plano de viagem direto até o Rio de Janeiro, mas após a terceira semana de viagem D. João decidiu que, sob o ponto de vista estratégico, era fundamental uma parada em Salvador, que havia sido a capital da colônia e em 1763 tinha perdido essa posição. Uma tentativa de separação já havia ocorrido na Revolta dos Alfaiates. D. João não só agradou os povos de Norte e Nordeste como nomeou o vice-rei do Brasil como governador da Bahia e anunciou a abertura dos portos brasileiros. Isso foi estudado pelo historiador Kenneth Light, mergulhando nos arquivos da Marinha britânica. Essa ligação com o Norte e Nordeste ajudaria a enfraquecida corte portuguesa que precisava de todo apoio e um Brasil unificado. Um bergantim de dez metros foi enviado ao encontro dos navios portugueses, cheios de cajú, pitanga e frutas frescas e, depois de três dias sem rumo, encontrou a nau! Assim foi recebido D. João refugiado das guerras napoleônicas. Quando ancoraram ninguém apareceu. As notícias corriam lentamente e a cidade não teve tempo suficiente para preparar qualquer festa. Finalmente João Saldanha da Gama aparece e comunica que não deixou ninguém se aproximar, antes das ordens reais. “Deixe o povo vir como quiser, porque deseja ver-me” diz D. João. No dia seguinte a multidão congestionava todo cais. Ouviam-se salvas de canhões e o badalar dos sinos de todas as igrejas, quando a família real entrou nas carruagens. Durante uma semana os festejos continuaram e D. João recebeu todos seus súditos, desde usineiros a pessoas muito humildes. Salvador era uma das mais bonitas cidades do império português. Havia a cidade baixa, mais humilde e a cidade alta com seus vastos casarões. As ruas e as casas de perto eram terrivelmente sujas e seus habitantes desmazelados. Os pais e maridos eram advertidos a manterem as mulheres e filhas reclusas. A prostituição de escravas possibilitara uma grande miscigenação entre homens brancos e mulheres de cor.
Inevitáveis eram a abertura dos portos e a liberação do comércio internacional na colônia, pois foi uma dívida com a Inglaterra. D. João ainda liberou a construção da primeira escola de Medicina do Brasil. As construções de duas fábricas foram permitidas e ainda abrir estradas e um plano de defesa da cidade. O Brasil até então não podia ter nenhuma faculdade, sendo obrigados a estudar em Portugal. Depois dessas medidas embarcam para o Rio de Janeiro.
O Brasil não existia, “era um amontoado de regiões mais ou menos autônomas, sem comércio, sem exército, sem nome para os que aqui nasciam. Discutia-se se seriam brasileiros, brasilienses ou brasilianos. Por trezentos anos o Brasil não existiu! O mapa do Brasil era quase o mesmo em 1808 e hoje. “Dois milhões de negros cativos foram importados para trabalhar nas minas e lavouras do Brasil do século XVIII”. Apenas 2,5% dos homens livres em idade escolar eram alfabetizados. Era impossível encontrar um médico, os barbeiros sangradores exerciam essa função. Os portugueses eram alarmantemente ignorantes e retrógados. Essa política de isolamento era deliberada e determinada pelo governo português! A abertura de estradas entre as capitanias era proibida para combater o contrabando de ouro e diamantes, facilitando a fiscalização! O tupi foi a língua vigente em São Paulo até o começo do século XVIII e era a mais indígena e brasileira de todas as cidades coloniais. Era o entroncamento de várias rotas de comércio. As casas eram ocas adaptadas. A comida era de índio. Os paulistanos vestiam-se com grande simplicidade, usando um poncho comprido, contra a chuva e frio, casacos e calças de algodão, botas compridas de couro cru e em seu cano uma faca comprida de cabo prateado. O grande número de prostitutas na rua, por causa dos tropeiros, causava espanto. O centro econômico era São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, depois do ciclo da cana de açúcar no Nordeste, do ouro e diamantes em Minas Gerais havia chegado ao fim.
Em 1808 não havia moeda corrente no país e a colônia vivia do escambo. Um quinto do que fosse encontrado nas minas de ouro eram reservados ao rei. Outros dezoito por cento eram pagos às casas de cunhagem. Vem desses tempos colônias os escorchantes juros que o Brasil carrega até hoje! Mesmo isolada a colônia era mais dinâmica que Portugal na economia, artes e ciência. Quinhentos e vinte e sete brasileiros formaram-se em Coimbra, formando a classe dominante brasileira. José Bonifácio foi um dos maiores intelectuais de sua época, formando-se em mineralogia. Viajando por toda Europa, assistiu à Revolução Francesa. Era mais bem preparado do que qualquer estadista português. Jornais, livros e reuniões acadêmicas eram considerados ilegais. Na América portuguesa de 1808 as tensões políticas, em prol da independência, eram agravadas pela escravidão. Os escravos faziam o serviço das máquinas, com grande sofrimento. Foram mais de dois séculos de tráfico. A população era de dois terços de mestiços e um terço de brancos, havendo sempre o pavor das rebeliões de escravos, pois constituíam o maior número populacional. Em 1798, na já mencionada Revolta dos Alfaiates, em Salvador, os revoltosos exigiam a independência do Brasil, o fim da escravatura e igualdade entre os cidadãos. A repressão portuguesa foi duríssima. Os escravos revoltosos foram mortos, decapitados, esquartejados ou banidos para a África. Os portugueses usavam os métodos de punição da idade média durante a inquisição em Portugal e também aqui no Brasil. O suplício judiciário incluía mutilação física, marcação com ferro em brasa, açoite e esquartejamento. Foi usado contra Tiradentes e os escravos revoltosos.
D. João, entretanto, usaria outra imagem: “a do rei benigno, que de tudo provê e de todos cuida e protege”. A historiadora Maria Odila Leite escreve que “A corte e o poder real fascinavam-nos como uma verdadeira atração messiânica”.
Foi turbulenta a chegada da família real no Rio de Janeiro e para os coloniais a visão daquela corte, foragida e castigada pela longa travessia, foi decepcionante. D. João era um homem gordo, lento, fatigado “com uma casaca condecorada de nódoas”. Carlota e as filhas desembarcaram com as cabeças raspadas cobertas por turbantes, devido à infecção de piolhos. As mulheres cariocas acharam que era a última moda na Europa e passaram a usar turbantes para imitar as nobres portuguesas. Na chegada a família real foi aspergida com água benta e levada à Igreja do Rosário. À frente do cortejo iam as autoridades do Rio de Janeiro, fechando-o vinha o pálio, sob o qual caminhava a família real, com varas sustentadas por oito pessoas, dentre elas o maior traficante de escravos do Brasil, Amaro Velho da Silva. Os festejos prosseguiram até 15 de março. Os integrantes da família ficaram hospedados no Paço Real. Em breve D. João iria para uma residência reformada e d. Carlota para uma chácara na praia de Botafogo, já que se encontravam separados. D. Maria, a louca, ficou no convento das carmelitas.
Encontrar moradia para tanta gente foi difícil e criou-se o terrível sistema de “aposentadorias” pelo qual as casas eram requisitadas. As letras PR (Príncipe Regente) foram interpretadas como “ponha-se na rua”. Em conseqüência os alugueis dobraram e os preços em geral subiram às alturas. Era preciso pagar os gastos de uma corte corrupta, perdulária e ociosa! ISSO LEMBRA ALGUMA COISA DE HOJE?
Em 1811, nos porões da fragata Princesa Carlota, chegava a última remessa de livros deixada no caís em Lisboa, sob a guarda do arquivista Luiz Gonzaga S. Marrocos, que, através de cartas para seu pai, seria um grande cronista de nossos costumes.
O viajante John Mawe descreveu que nenhum porto colonial estava tão bem localizado para o comércio geral quanto o do Rio de Janeiro, pois era uma escala fundamental nas longas navegações. Todos os viajantes referem-se à grandiosidade da natureza local. As montanhas e a vegetação dominando tudo. Observada do mar a cidade era linda. Em terra tudo mudava: umidade, sujeira e falta de bons modos dos moradores. A limpeza era confiada aos urubus, ratos infestavam a cidade, os negros carregavam tonéis de excremento nas costas para despejarem no mar. Eram conhecidos como tigres pelas manchas nas costas causadas pela uréia. Devido ao seu baixo custo o saneamento das cidades litorâneas foi postergado!
Nos modos caseiros somente homens usavam as facas para comer as mulheres e crianças os dedos. Quando havia sobremesa era sempre fruta. A falta de modos à mesa assustava os estrangeiros. O pintor Debret também ficou chocado com esses hábitos. Comentou que só bebiam água e não usam garfos ou facas e carne fresca era uma raridade. Devido a problemas de higiene a carne salgada era a mais usada. Apesar disso a alimentação continha muitas frutas, peixes, aves, verduras e legumes. A farinha de trigo e milho era consumida em toda colônia. O ritmo da cidade era seguido pelas badaladas dos sinos, tornando-se um local muito barulhento. Nos feriados os escravos com roupas coloridas, em grandes círculos, cantavam e dançavam batendo palmas. “É um espetáculo singular de alegria, tumulto e confusão que provavelmente não é possível ser visto na mesma escala em outro país fora da própria África.” O calor e a falta de higiene provocavam inúmeros problemas de saúde e não havendo médicos e dentistas, podemos avaliar o que ocorria nessa época. Com a chegada da família real o saneamento, a saúde, a cultura, a arte, a arquitetura e os costumes mudaram para melhor.
D. João, príncipe regente e depois rei do Brasil (1816), e D. Carlota não se lavavam, ao contrário da colônia que era muito asseada, fato que chamava a atenção dos estrangeiros que aqui chegavam. Nos treze anos que esteve no Brasil, D. João tomou um só banho, a conselho médico, na Praia do Caju.
João Maria José Francisco Xavier de Paula Luís Antonio Domingos Rafael de Bragança, ou D. João VI, nasceu em 1767 e morreu aos cinqüenta e nove anos em 1826. Último monarca absoluto de Portugal e único de um reinado que durou cinco anos. Seu reino chamava-se Reino Unido do Brasil, Portugal e Algarves. Era um rei sem ações, adiando sempre seus compromissos, inerte o que provocava tensão entre seus conselheiros. Oliveira Martins relata “Sofria de vertigens e ataque de melancolia, por padecer de hemorróidas... rosto flácido, donde pendia o conhecido beiço, sem vida, peculiar dos Bourbons”.
A aclamação de D. João ocorreu em 1816, dois anos após o falecimento de sua mãe. Sofria de depressão. Em Portugal chegou a morar com frades e mais tarde em Alentejo, isolado na casa da família. Carlota aproveitou para assumir a regência de Portugal, mas D. João retornou à Lisboa e passam a viver separados. Adorava música sacra e era muito religioso, sempre cercado de padres. Casou por obrigação e teve nove filhos. No Brasil tornou-se ainda mais solitário. Existem algumas evidências de que teve um relacionamento homossexual com um dos seus camareiros reais. Trajava-se muito mal, já que tinha horror a tudo que era novo.
D. Rodrigo de Souza Coutinho foi um dos responsáveis pela vinda da família real ao Brasil. Era um grande conselheiro, junto com Antonio de Araújo e Azevedo, sucessor de D. Rodrigo, que trouxe as máquinas impressoras inglesas que criaram a imprensa no Brasil, a qual era censurada. Thomaz Antônio Villa Nova Portugal, sucessor dos outros dois, tomava todas as decisões por D. João, mesmo as mais insignificantes. Esses três homens foram importantíssimos para o reinado do príncipe regente. Segundo Oliveira Lima “D. João foi sem dúvida alguma no Brasil, e ainda é, um rei popular”.
Dona Carlota Joaquina era uma mulher feia, maquiavélica, vingativa, mas inteligente e vivaz. Era magra, baixa, cabelos escuros, pele morena e coxa, devido a uma queda de cavalo na infância. Nasceu em 1775 e morreu em 1830, aos cinqüenta e quatro anos. Era filha de Carlos IV e irmã de Fernando VII, reis de Espanha. Foi considera culpada de diversas conspirações contra reis e nobres. D. João e Carlota casaram por procuração. Tinha dez anos e ele dezessete. Esses casamentos tentavam manter estabilidade na Península Ibérica, que fora atacada em séculos anteriores. Quando Carlota Joaquina tinha quinze anos o casamento foi consumado. Alguns historiadores dizem que nem todos os filhos eram de D. João. Carlota detestava o Brasil e em sua volta a Portugal recusou-se a jurar a Constituição, indo morar na Quinta do Ramalhão, sem título e direitos de rainha. “Serei mais livre em meu desterro do que vós em vosso palácio”.
A corte portuguesa, composta entre dez mil a quinze mil indivíduos, encontrava-se pobre e destituída em Lisboa, mas chegando ao Rio de Janeiro tudo piorou. John Adams, presidente dos Estados Unidos, quando mudou a sede do governo para Washington levou mil funcionários. D. João trouxe quinze mil portugueses. A corte era cara, perdulária e voraz sem nenhuma intenção de administrar nosso país. O cônsul inglês James Henderson cita que “Poucas cortes européias têm tantas pessoas ligadas a ela quanto à brasileira, incluindo fidalgos, eclesiásticos e oficiais”. Todas essas despesas mal-administradas foram herdadas pelo Brasil após a independência, ao custo de DOIS MILHÕES DE LIBRAS ESTERLINAS, emprestados da Inglaterra. Ao retornar para Portugal, D. João levou todas as barras de ouro e os diamantes. Dez anos de toma lá dá cá arruinou o primeiro Banco Central do Brasil. A instituição foi liquidada em 1829 e recriada em l853, no governo de D. Pedro II.
A corrupção, sob D. João VI, corria solta. Os responsáveis pelas principais instituições eram os “símbolos de maracutaias e enriquecimentos ilícitos” no Brasil. Em 1823 a viajante inglesa Maria Graham, convidada para um espetáculo de gala, observou que a anfitriã estava coberta com diamantes que, na opinião dela, valeriam cerca de trinta de quatro milhões de reais e que em casa tinha jóias de igual valor.
A roubalheira era tamanha que os cariocas celebrizaram-na em versos populares:
Quem furta pouco é ladrão
Quem furta muito é barão
Quem mais furta e esconde
Passa de barão a visconde.
A corte portuguesa não tinha dinheiro e a colônia já era mais rica do que a metrópole. Trezentos anos após o descobrimento o Brasil era uma terra de enormes oportunidades e D. João precisa do apoio dessa elite muito rica. Ele passou a distribuir títulos de nobreza aos borbotões. “Em Portugal, para se fazer um conde se pediam quinhentos anos; no Brasil, quinhentos contos”, escreveu Pedro Calmon. Coube a essa estranha nobreza socorrer D. João, financeiramente. Na primeira lista de subscrições, para angariar dinheiro, metade dos contribuintes era traficante de escravos! Essa nova nobreza emergente tinha dinheiro, mas nenhuma sofisticação ou fidalguia! Aqui não havia esplendor ou elegância. O beija-mão era a cerimônia preferida de D. João, ritual que já não existia na Europa. Algumas dessas cerimônias duravam até sete horas. Um grupo de índios também quis participar do ritual e foi acolhido “com humanidade e atenção”. Esse foi, em dúvida, um belo gesto democrático.
Foi publicado nos jornais londrinos que o Brasil, finalmente após três séculos, havia aberto seus portos. Os espertos ingleses entulharam o país com suas mercadorias. Havia coisas práticas e úteis, mas também muita quinquilharia como patins de gelo e pesadas mantas de lã. Esses produtos fizeram sucesso pela boa qualidade e foram reaproveitados das mais diversas maneiras com muita inteligência e criatividade.
A Inglaterra, apesar de monárquica, era rica em desenvolvimento e idéias, que circulavam livremente, ao contrário da França fechada de Napoleão. Londres era a maior cidade do mundo. Devido às invenções revolucionárias como a locomotiva a vapor, as fortunas e idéias se espalhavam e o mesmo não acontecia na França, sob a vontade do imperador voluntarioso. Por duzentos anos a Inglaterra venceu todas as batalhas navais em que se envolveu. No seu império o sol nunca se punha e D. João devia imensos favores a ele. O governo inglês sabia da fragilidade de Portugal e soube obter vantagens dessa situação. O plano era induzir os comerciantes britânicos a fazerem do Brasil um empório para as manufaturas destinadas ao consumo de toda América do Sul. A Inglaterra foi tão bem sucedida que nem os produtos portugueses podiam competir com os ingleses. O Brasil se tornou um território livre para essas mercadorias. D. João concedeu-lhes o privilégio de cortar madeira brasileira para a construção de navios de guerra! Seus navios de guerra podiam entrar nos portos de domínio português em qualquer tempo: guerra ou paz. A balança comercial pendia sempre e escandalosamente para o lado britânico. Os brasileiros apesar de enganados venderam muitas mercadorias falsas aos estrangeiros.
Escreveu Pedro Calmon, historiador; “O país era desmesurado e virgem, enquanto que o novo governo, adventício e indigente, tinha de improvisar e recriar tudo”. Em 10 de março D. João organizou seu novo gabinete e teria que criar um país do nada. A abertura dos portos e a liberdade de comércio e indústria manufatureira representavam o fim do sistema colonial no Brasil. Criaram uma fábrica de ferro, outra siderúrgica, em Sorocaba, moinhos de trigo, fábricas de barco, pólvora, cordas e tecidos. Novas estradas foram construídas. O percurso dos tropeiros foi encurtado e a navegação a vapor foi inaugurada em 1818. A primeira faculdade de medicina do Brasil foi criada em Salvador e outras de técnicas agrícolas, laboratório de estudo de análises clínicas e o ensino de Engenharia Civil e Mineração. O primeiro jornal brasileiro, A Gazeta do Rio de Janeiro, começou a circular em Setembro de 1808, mas só com notícias favoráveis ao governo! O Rio de Janeiro é promovido à sede oficial da Coroa. As abafadas janelas mouriscas das casas cariocas, chamadas de rótulas foram substituídas por vidraças arejadas. O Rio ganhava o direito de voz e voto no Congresso, apesar de estar tão longe de Lisboa.
D. João também se dedicou a “empreendimentos civilizatórios”, promovendo as artes, a cultura e a tentar incluir algum refinamento nos hábitos atrasados da colônia. Foi contratada a Missão Artística Francesa, em1816, com os nomes mais famosos da época. D. João pagou a todos as despesas de viagem além de generosas pensões para que ficassem seis anos aqui no Brasil. Os artistas ficaram desapontados, porque a corte só se interessava por música. Debret ficou quinze anos no Brasil retratando, erradamente, escravos limpos e bem cuidados, contudo foi responsável pela melhor e mais ampla iconografia da época. Aos poucos essas mudanças começam a influenciar os hábitos dos moradores. Alguns viajantes se espantavam com a quantidade de navios saindo e chegando dos portos brasileiros. Os anúncios dos jornais mostram essa mudança. De coisas rudimentares anunciadas agora se podia e ler “Penteia as senhoras na última moda de Paris... Tem uma pomada que faz crescer e aumentar o cabelo... Um novo sortimento de falsa e verdadeira bijuteria. As mudanças foram morosas e ostensivas.
O Rio de Janeiro sofreu um enorme crescimento populacional e o espaço físico não era suficiente. Metade da população era escrava. Essa população formava uma fonte constante de tensão social. O Rio tem uma tradição de violência muito antiga e forte, desde esses tempos coloniais em que os escravos eram maltratados e espancados. A meu ver sua conseqüência segue até os dias de hoje. A punição aos escravos chegava a TREZENTOS AÇOITAMENTOS, em praça pública e PRISÃO. Essa posição da corte provocava muitas revoltas e a maioria dos indivíduos andava armada. A subversão era grande e as autoridades tinham receio que as idéias libertárias francesas influenciassem a nação. O major Vidigal era o mais temido dos agentes policiais. Sua truculência contra os escravos era notória. Em recompensa aos seus serviços recebeu , em 1820, um terreno ao pé do Morro Dois Irmãos. Invadido em 1940, hoje está lá a Favela do Vidigal. A cidade, para o bem do saneamento, foi redesenhada junto ao mar, sendo seu traçado quase irreconhecível quando comparado aos mapas da época.
No Rio são muitos os lugares e monumentos históricos mal conservados, mas o Mercado do Valongo, onde se vendia e comprava os pobres negros, “o maior entreposto negreiro das Américas sumiu do mapa sem deixar vestígios”. Em 1996, durante uma construção foram achados fragmentos de ossos, cerâmica e vidro. Aí era o cemitério dos pretos que chegavam já mortos da África, que eram cremados, precariamente, jogados numa vala rasa e cobertos com uma camada de cal! Eram despejados nesse mercado negreiro entre dezoito mil a vinte e dois mil africanos por ano! “Tentar suprimir o tráfico... era uma atitude vã”, disse o historiador Alan K. Manchester. Era um negócio gigantesco com lucros astronômicos! A maioria vinha do Congo, de Angola e de Moçambique. A taxa de mortalidade durante a travessia era altíssima. A bordo dos navios, eles eram considerados cargas. Os traficantes eram respeitados e reverenciados, pois eram os grandes doadores de dinheiro à corte portuguesa, recompensados com títulos e honrarias! Têm-se dados que até os monges beneditinos e os padres jesuítas possuíam escravos. “Os cativos excedentes eram alugados a terceiros”! Fora o homicídio a fuga era o crime mais grave que um escravo podia cometer. O principal refúgio dos escravos foragidos não eram lugares ermos e a floresta, mas a própria cidade onde se misturavam à multidão de negros e mulatos. Muitos escravos alforriados enriqueciam e se tornavam donos de escravos. “A liberdade era um mergulho no oceano de pobreza compostos por negros libertos, mulatos e mestiços, à margem de todas as oportunidades... – um problema que cento e vinte anos depois da abolição oficial da escravidão, o Brasil ainda não consegui resolver”, escreve Lorentino Gomes.
O pesquisador Rubens Moraes relatou que duzentas e sessenta e seis viajantes escreveram suas experiências no Brasil. São relatos maravilhados pela beleza e diversidade brasileira. São cinco categorias de viajantes: 1)comerciantes mineradores, homens de negócio. 2) nobres, diplomatas, militares e funcionários de governo.3) cientistas. 4) pintores e paisagistas. 5) aventureiros e curiosos. “Pena que um país tão lindo não seja governado por uma nação ativa e inteligente” comenta Rose Marie. “os brasileiros se destacam pela abundância, mais do que pela própria elegância do serviço”. Essas anotações mostram uma corte caipira e deselegante. Koster fala do interior nordestino: “Essa gente é vingativa. As ofensas muito dificilmente são perdoadas... São muito ignorantes e poucos possuem os mais modestos rudimentos de instrução”... ”Os sertanejos são corajosos, sinceros, generosos e hospitaleiros”. São inúmeros os relatos interessantes e instigantes dos primeiros viajantes, cientistas e artistas que aqui aportaram.
A Guerra Peninsular travada em Portugal e Espanha ocorreu de 1807 a 1813, comandada pelo General francês Junot, a mando de Napoleão Bonaparte. Junot era um general menor, pois não se esperava resistência desses dois países pobres, todavia encontrou forte resistência por parte deles, o que resultou no final de mais de uma dezena de vitórias napoleônicas. Junot entra em Lisboa dois dias depois da partida da família real portuguesa. Auxiliados pelo exército inglês, comandado pelo general Wellesley, os aliados derrotaram Junot na cidade de Vimeiro. Quatro anos depois o general expulsou os franceses da península, “numa combinação de guerrilha com batalhas convencionais e lances geniais”. Engenheiros britânicos e trabalhadores portugueses construíram as Torres Vedras, um cinturão de quarenta e oito quilômetros em torno de Lisboa. Nesse meio tempo Napoleão perderia a guerra contra a Rússia e a derrota de Waterloo seria o final desse poderio.
Antonio Gonçalves da Crua, Cabugá, tinha um plano de deixar qualquer um pasmo. Retirar Napoleão do exílio e transportá-lo para Recife, onde comandaria a revolução pernambucana pela independência! Depois retornaria a ser imperador da França! Houve uma revolução, porém comandada por José de Barros Lima, que aprisionou o governador de Pernambuco e proclamou a república. Nenhuma das províncias vizinhas auxiliou o novo país. A repressão portuguesa foi implacável e sentenciou que “depois de mortos... serão cortadas as mãos e decepadas as cabeças e se pregarão em postes... e os retos de seus cadáveres serão ligados às caudas de cavalos e arrastados até o cemitério”. Após esses fatos D. João, apreensivo, sagra-se oficialmente rei do Brasil, Portugal e Algarves. Foram dois anos de pompa e festas como jamais havia se visto antes no Brasil. Em 1817 a princesa Leopoldina chega ao Brasil e se casa com D. Pedro, o herdeiro do trono. O embaixador Marialva em Viena oferecia uma das festas mais grandiosas, em comemoração ao casamento de Leopoldina. Para se ter uma idéia ofereceu aos nobres jóias avaliadas em 5800 libras! Isso contrastava com as dificuldades da corte no Brasil, que não era esplendorosa nem requintada. O Paço Real era um prédio modesto, grande e não tinha um gênero definido de arquitetura. Era considerada incompatível como residência real. Um cronista francês teve péssima impressão da rainha e da corte pelo desmazelo e deselegância. Considerada exótica por ele ainda descreve que nunca vira “tantos empregados, guarda-roupas, assistentes, servos uniformizados e cocheiros. Essa tendência ao orientalismo de forma alguma corresponde ao seu luxo”. Muita pompa para pouca circunstância, um reino arruinado, deselegante e gastando mal os seus poucos recursos! Todavia, D. João depois desses festejos levava uma vida bastante pacata e tranqüila. Depois das audiências matinais, almoçava com a família e dormia de uma a duas horas e à tarde ia passear com uma pequena carruagem. Nesses passeios estavam incluídas a merenda e as necessidades fisiológicas do rei, que eram feitas na frente dos presentes, sem constrangimento algum. À noite recebia os súditos para o beija-mão, indo se deitar às onze horas.
Portugal, durante o tempo em que a família real permaneceu no Brasil, é governado pelo marechal irlandês William Carr Beresford. De um lado tinha-se a metrópole amorfa e empobrecida pela demorada ausência do rei e de outro a ex-colônia havia mudado e enriquecido. Os anos que o rei passou no Brasil foram de sofrimento e penúria para os portugueses. Entre 1807 e 1814, Portugal perdeu quinhentos mil habitantes. Nesse período Portugal se transformou num protetorado britânico. O marechal irlandês governou o país com mão de ferro. Eles, também, foram cruéis e sanguinários com o povo. Os governadores portugueses, ligados a D. João, avisaram o rei da crescente insatisfação popular na metrópole e do risco corrido por permanecer longe dela. Portugal tinha ficado com o ônus da mudança e o Brasil e a Inglaterra com os benefícios. O comércio de Portugal com o Brasil despencou devido aos juros enormes. O governo britânico temia que se a corte não voltasse a situação se tornaria incontrolável e isso se confirmou. Rebelados se declaram contra o domínio inglês e foi constituída a Junta Provisional Preparatória das Cortes que redigiriam uma nova constituição liberal. Isso indicava o quanto o poder de D. João estava ameaçado. Em 1821, a volta do rei era uma exigência. Se voltasse a Portugal poderia perder o Brasil, que acabaria por declarar sua independência se permanecesse no Brasil perderia Portugal. O inseguro D. João depois de muitas discussões declarou: “Pois bem, se o meu filho não quer ir, irei eu”. Essa foi uma decisão corajosa.
No dia 24 de abril de 1821 D. João, a apenas dois dias de sua partida obrigatória do Brasil, aconselhou seu filho mais velho: “Pedro, se o Brasil se separar, antes seja para ti, que me hás de respeitar, que para algum desses aventureiros”. O rei gostava do Brasil, tendo sido muito bem acolhido pelo povo e partia para um país onde não sabia o que iria enfrentar. D. João VI é aclamado pela multidão, que pedia sua presença e exigia que permanecesse no país e assinasse a Constituição que lhe tirava parte dos poderes, contrariando as Cortes portuguesas. A manifestação foi violentamente reprimida pelo príncipe Pedro, cujas tropas ocasionaram um verdadeiro massacre. Em 26 de abril de 1821 partiram o rei e toda sua comitiva, depois de terem raspado os cofres do Banco do Brasil e levado embora o que restava do tesouro real. Oliveira Lima recorda que “A realeza, que acabava de viver na corrupção, fizera um verdadeiro assalto ao erário brasileiro” Vergonhosamente, tais atitudes ocorrem até os dias de hoje no Brasil! “Isso equivalia a uma bancarrota, posto que não declarada”, avalia o historiador Pereira da Silva. Alguns membros mais corruptos de sua corte foram proibidos de desembarcar em Lisboa.
Em maio de 1821 morre Napoleão Bonaparte, mesmo antes de D. João VI desembarcar em seu país. Para ele o imperador deixou apenas uma frase: “Foi o único que me enganou”.
Em nenhum outro período da história do Brasil ocorreram mudanças tão profundas e rápidas. Em treze anos deixou de ser colônia para se tornar um país independente. Há apenas duzentos anos o Brasil tinha uma unidade política e territorial muito frágil. Em 1822 as províncias do Norte e Nordeste não aderiram à Independência! D. Pedro I teve que recorrer à força militar para convencê-las. Por muito tempo houve movimentos separatistas regionais. A preservação territorial foi uma conquista de D. João VI. “Pobre, analfabeto e dependente de mão - de - obra- escrava, o novo Brasil deixado por D. João ao seu filho D. Pedro I continuava anestesiado por três séculos de exploração colonial que haviam inibido a livre iniciativa e o espírito empreendedor”. Na avaliação dos “pais” da independência, o Brasil era um país onde, brancos, negros, mestiços, índios, senhores e escravos viviam sem um projeto de nação. A independência de 1822 foi apenas conciliatória, pois não havia o desejo republicano nem revolucionário. As grandes tensões sociais existentes foram adiadas e amortecidas, não resolvidas. A escravidão permanecia como uma vergonha nacional, sendo abolida em 1888, pela bisneta de D, João VI, princesa Izabel, mas divergências regionais emergiam de forma violenta, tais como: Confederação do Equador em 1824, a Guerra dos Farrapos em 1835 e a Revolução Constitucionalista em 1932. Em 1881 a Lei Saraiva, pela primeira vez, estabelece a eleição direta para alguns cargos legislativos e apenas 1,5% da população, constituída de grandes comerciantes e proprietários rurais tinha direito ao voto! “Heranças mal resolvidas em 1822, todos esses problemas permaneceriam, nos duzentos anos seguintes, assombrando o futuro dos brasileiros – como o fantasma de um cadáver insepulto”.
O arquivista real Luiz de Santos Marrocos foi um dos muitos portugueses que permaneceram no Brasil depois da saída da corte. Chegando, reclamava do povo, dos hábitos e modos, contudo aos poucos foi se integrando na nova sociedade e não quis mais partir. Adaptando-se perfeitamente ao nosso país considera as pessoas trabalhadoras e simpáticas. Luiz casa-se com uma carioca de boa família e constitui uma família. Marrocos cresceu e prosperou no Rio de Janeiro. D. João visitava habitualmente sua biblioteca, com obras de arte. Em 1811 sugere ao príncipe regente que crie, também, uma biblioteca em Salvador, com livros duplicados dessa biblioteca. Em 1813, Marrocos torna-se responsável pelos manuscritos da coroa e sua conservação. Depois da independência tornou-se um alto funcionário do governo do imperador. Ele morre aos 57 anos. “Com Marrocos morria um pedaço de Portugal que atravessara o Atlântico com a corte de D. João para nunca mais voltar”.
O inusitado da vinda da família real ter vindo para morar no Brasil, e D. João vir a gostar muito daqui, a ponto de não querer voltar, é que antes nenhum rei com colônias ultramarinas tinha sequer visitado alguma colônia, muito menos pensado em morar nesse local. Os reis e rainhas destronados, em tempos de guerra, se refugiavam em outros territórios, mas nenhum teve a ousadia de atravessar o Atlântico, para viver e governar na colônia do outro lado do mundo!
[1] Lorentino, paranaense, nasceu em 1956. Formado no Paraná, cursou a Univ. S. Paulo, Univ. de Cambridge e Vanderbilt. Atualmente dirige uma unidade da Editora Abril.