terça-feira, 9 de setembro de 2008

EÇA DE QUEIROZ A CIDADE E AS SERRAS




A literatura do sec. XIX me encanta pela minúcia descritiva, pintando realmente um quadro sobre seus personagens e sentimentos, sobre a descrição dos ambientes e os costumes da época. Torna-se, assim, prazeroso nos levarmos para esses lugares e sentirmos a alma dessas pessoas.
Eça de Queiroz é um mestre nesse assunto. Para mim um dos melhores. Mas tenho que dizer que quase todos os escritores do período, assim como a sociedade, castigavam duramente as mulheres, as quais consideram acéfalas ou quase. Que sua maior qualidade era ser boa dona de casa, bonita, rica e virtuosa. Inteligência, sexualidade e independência para Eça, neste livro, nem pensar. Isso é desgastante para as mulheres atuais.
A Cidade e as Serras é narrado sob a ótica do melhor amigo do herói, em tudo diferente dele. Zé Fernandes é amante das serras e da vida tranqüila que elas lhe proporcionam. O estilo do livro é realista.
É relatado com extrema elegância, ironia na dose certa, quase satírica, com belíssimas metáforas, que na maioria são engraçadíssimas também.
O clima, Paris, em seu maior luxo, intelecto e desenvolvimento tecnológico. A tecnologia descrita é espantosamente atual e requintada. Eça estava adiante do seu tempo! Jacinto, o personagem principal, vem de família portuguesa, muito antiga, honrada e o tem como último descendente. O herói, exigentíssimo consigo mesmo e seus pares, mora no 202 em uma casa senhorial nos Campos Elísios. O edifício é equipado com todo o aparato científico-tecnológico. O ambiente em que vive é elegante, caro e, sobretudo culto. Movimenta-se pela mais alta sociedade parisiense como um dos seus ícones, no que tange a refinamento, modernidade e sabedoria. Possui uma biblioteca vastíssima com os tomos que vão dos mais antigos aos mais modernos e avançados. Seu domicílio é uma reunião da alta tecnologia e aparato sem limites com qualquer extravagância imaginável. Seus amigos pernósticos e ilustres retratam o que há de mais sofisticado em uma Paris moderna e saturada. É nesta fase do livro, que as metáforas inteligentes e engraçadas são descritas para delírio do leitor e certeza de riso solto. Depois de anos morando lá, Jacinto começa a adoecer, a emagrecer e se definhar por puro enfado com tanta falsa intelectualidade, excesso de novidades culinárias, literárias, religiosas e científicas. Seu grande amigo Zé Fernandes, que agora vive com ele, o convence a mudar-se, por algum tempo, para os belos e simples ares da serra, que eram o torrão natal de sua família. Ele cede por esgotamento físico e moral. No entanto levam com eles vários caixotes de livros, tapetes, roupas, novo artifício como o telefone e mais uma grande parafernália. A viagem é totalmente desastrosa, com incidentes cômicos e acabam chegando a Portugal só com a roupa do corpo e um velho jornal. Jacinto assusta-se com a rusticidade que encontra, mas aos poucos vai se deslumbrando com a beleza, força, paz, harmonia e fecundidade da natureza no campo, que antes deplorara. Faz diversos amigos dentre a família e a vizinhança, desenvolvendo ao mesmo tempo projetos sociais e agrícolas. Animado e rejuvenescido com a mudança acaba se transformando em um homem seguro, vigoroso e genuinamente feliz. Trocara sua casa moderníssima e artificial de Paris, por um amplo casarão, em estilo português, espartanamente mobiliado. Só o necessário para um solteirão convicto. Seu primo o havia introduzido à simples sociedade portuguesa, onde é recebido como um nobre e augusto personagem. Contudo, com o tempo esse núcleo habitua-se a Jacinto, que passa a ser muito prezado. Apesar disso ainda não conhece a prima do Zé Fernandes, cujo retrato chamara tanto a sua atenção em Paris, por sua beleza e personalidade. Após muitos imprevistos que impossibilitaram o encontro dos dois, a linda Joana se apresenta. Jovem educada e gentil, Jacinto se apaixona perdidamente. Tendo seu amor correspondido casam-se em um breve período de tempo. Agora o casarão de Tormes está completo: poucos móveis imprescindíveis, flores nos jarros, uma esplêndida esposa. Enfim uma família, pois da união entre os jovens nasceram duas lindas crianças que jamais sonhara ter. Somente poucas caixas parisienses foram desencaixotadas. Essa fase da serra é descrita genialmente. Os símbolos usados nessas narrações são belos e nos são desvendados com grandeza e patriotismo. Zé Fernandes, por sua vez, começa a perceber certo aborrecimento com tal bucolismo e paz. Volta para Paris de férias. Logo na chegada aos 202, número famoso da casa de Jacinto, já principia a sentir o mesmo aborrecimento por tudo e por todos, que Jacinto sentira, anteriormente. Paris era a mesma, um pouco mais velha (cinco anos). Os mesmos sorrisos, os mesmos olhares e a mesma comida, que ele considerava ruim. Ao visitar a velha Sorbonne onde estudou choca-se com o abominável comportamento dos estudantes diante de seus mestres. Isso ele não poderia conceber. Depois de inúmeras frustrações sente o mesmo enfado que assolara seu grande amigo. Decide então retornar para sua casa, certo de que Portugal[1], com suas majestosas serras e seu povo caloroso, é um local muito mais aprazível para se habitar. Chegando à estação de trem, reencontra Jacinto, belo e revigorado nem a sombra do aborrecido homem que fora, acompanhado da linda Joana e suas belas crianças que o abraçam e o enternecem com grande amor, que só lá poderia encontrar.
[1] Saudade é a palavra certa

Um comentário:

Unknown disse...

Ótimo texto! Há um pequeno problema logo no início: Jacinto não mudou-se para um bairro badalado de Paris, ele já nasceu no 202, nos Campos Elísios.