quinta-feira, 14 de outubro de 2010

O JOGADOR de FIODOR M. DOSTOIEVSKI





“Eu tinha dezesseis fredericos e lá... talvez lá estivesse a fortuna! Coisa estranha, ainda não ganhei nada, mas ajo, sinto, penso como se fosse um homem rico e não posso me ver de outro modo”.
Narrado na primeira pessoa do singular e com esses pensamentos podemos imaginar as alegrias e tristezas de um jovem jogador russo que se unira a um grupo heterogêneo de pessoas que se passavam por milionárias, mas eram nobres falidos, pretensos marqueses, mulheres de várias origens e golpistas. Reunidos, na Alemanha, em uma estação de águas à beira do Rhin, o general tem sua comitiva da qual Alexis Ivanovich, jovem preceptor de 25 anos e bacharel em Universidade, faz parte. Estão hospedados em um caríssimo hotel e o grupo chama atenção de todos por sua imponência. Um francesinho esnobe, um inglês simpático e algumas mulheres também incorporam essa confraria. O herói tinha um gênio forte, era confiante e desprezava a igreja e os franceses que, por sua vez, desprezavam os russos. Essa narrativa impagável passa-se em 1814, quando havia ocorrido a guerra entre França e Rússia. Por esse motivo, o preceptor e o francês têm uma discução acirrada sobre a atitude destes dois exércitos. “Em 1812 vi um homem contra o qual um fuzileiro francês disparou somente para descarregar sua arma. Este homem era então um menino de dez anos e sua família não tivera tempo de abandonar Moscou”, conta o preceptor. Esse fato gerou a discução e o general ficou deveras descontente, mas não Mr. Astley, o inglês, que observava tudo com curiosidade. Paulina, bela jovem enteada do general e figura enigmática, precisava desesperadamente de dinheiro e pedira para Alexis vender seus diamantes, mas conseguira pouco com a operação. A avó estava doente e todos, sem exceção, esperavam por um telegrama anunciando sua morte e com isso a resolução de todos os problemas através da rica herança. Paulina precisava se casar com um milionário e bastava. Desesperada pede ao pobre Alexis que jogue tudo que tinha e que deveria ganhar o máximo possível. Apaixonado por ela, não sabe bem como agir, pois ela o tratava como lacaio e não o considerava como um homem. Chegando ao cassino, aproxima-se da roleta e vê no jogo uma forma como outra qualquer, como um trabalho, a fim de ganhar dinheiro. Aqui Dostoievski nos brinda com uma descrição minuciosa sobre uma mesa de jogo. “O pensamento de que estava debutando como jogador de outra pessoa me perturbava. Era uma sensação muito desagradável...” “sentia ganas de sair dali... Deram-me mais oitocentos florins e, reunindo tudo, fui ao encontro de Paulina.” Porém prometera a si mesmo que não jogaria mais por ela. Paulina era ciente de seu amor, mas mostrava-se indiferente. Essa jovem sabe que o general está nas mãos do francês, pois lhe havia pedido dinheiro emprestado e hipotecado tudo em nome dele, Des Grieux. O inglês, Mr. Astley, “era colossalmente rico. Foi quando a senhorita Blanche foi levada a olhá-lo.” Não tenhamos dúvidas de que aqui quase todos estão endividados e mulheres desejosas de fazer fortuna com qualquer um que tenha posses. Alexis, apesar de sua decisão, volta a jogar para Paulina, mas sob a condição de que contasse porque precisava tanto daquela importância. Ela, porém, não esclarece nada. Na sala de jogos “Observava e fazia anotações... de fato na sucessão de probabilidades fortuitas, há, senão um sistema, uma espécie de ordem.” Ele devia essas observações a Mr. Astley, “que passa toda a manhã junto às mesas sem jamais apostar.” “Perdi tudo até o último vintém e em muito pouco tempo”, mas voltou a ganhar e, em um devaneio contra o destino, colocou tudo em jogo e perdeu novamente. Assim, retorna de mãos vazias para Paulina. O francês observa de forma sarcástica que apesar dos russos serem “com freqüência jogadores, eles eram, a seu ver, incapazes de jogar.” Os russos são ávidos pela roleta “e como jogamos a torto e a direito, sem nos cansarmos, nós perdemos”, replica o jovem. Alexis compara, também, os russos e alemães na forma de enriquecer. Os alemães são trabalhadores, não gastam nada, e ao fim de cinco ou seis gerações estão ricos e “e aparece o barão de Rothschild em pessoa ou Hoppe & Cia, ou que diabo seja. Prefiro mergulhar na devassidão à maneira russa ou fazer fortuna na roleta!” São críticas bastante amargas e apropriadas. Enviavam vários telegramas à Rússia para saber se a avó já estava morta e resolver suas pendências. O herói questiona Paulina a esse respeito, que para ele é indecente. Afirma que para ser feliz é preciso ganhar, pois é sua única saída. Paulina o considera “desordenado e instável.” Ele tem uma meta de vida. “Ocorre que com dinheiro me tornaria outro homem, mesmo aos seus olhos, e deixaria de ser um escravo.” Ela considera seu discurso de “fedelho”. Alexis afirma que até mataria por ela, mas não acreditava que pediria isso, entretanto Paulina pediu que ofendesse a mulher de um Barão e ele o fez! Isso causa quase um problema de estado, pois os nobres afastam-se correndo. O Barão queixa-se ao general, o qual despede Alexis. Agora está sozinho para pagar as contas do hotel etc. O Barão de Wulmerhelm acha pouco e quer que seja preso! Contudo, com muita perícia Alexis implora para continuar como preceptor, e ponto final. Os argumentos usados são estritamente parecidos com os dos políticos brasileiros que se vêem presos em maracutaias e não têm explicação lógica. Alexis inverte o jogo e diz que foi ofendido e que processará a baronesa e seu marido. São momentos de comicidade inteligente. Com seu pequeno pagamento no bolso dirige-se ao cassino e observa: “eu ainda não ganhei nada, mas eu ajo, sinto, penso como se fosse um homem rico e não posso me ver de outro modo”. Detesta Des Grieux e sua postura e acha que “é raro o francês ser espontaneamente amável, poderíamos dizer que é amável por ordem, por cálculo.” Procurado por esse homem, a pedido do general, roga-lhe para que desista de seus planos advocatícios. Recusa-se veementemente, “pois ele, a baronesa e todo mundo pensariam sem qualquer dúvida que fui lhes oferecer desculpas por temor e para reaver meu emprego.” “Arre! Que suscetibilidade e que refinamentos!” Des Grieux declara que o General está apaixonado por mademoiselle Blanche da comitiva e quer casar-se com ela. Além do mais aguardava notícias da Rússia para por sua vida em ordem. Irritado diz “que diable! Um Blanc-bec comme vous quer desafiar para um duelo um personagem tão importante quanto o barão!” Paulina escreve-lhe um bilhete para que desista de tudo. Evidentemente existia algo entre esses dois. “Ele a tem em suas mãos, ela está sob seu jugo...” Claro, não nos esqueçamos das dívidas de toda a família. Mr. Astley avalia que isso poderia afetar o casamento do general com a jovem francesa e Alexis descobre, também, que o marquês ganhou o título e o próprio nome há pouco tempo e que a senhorita Blanche é uma oportunista conhecida, que muda sempre de sobrenome. Agora emprestava dinheiro a juros e seria possível que o general lhe devesse dinheiro! Todos aguardavam ansiosos o telegrama dizendo que “a velha bruxa” havia morrido. Entretanto, eis que aparece no hotel alguém transportado em uma cadeira e “rodeado por criados, servos e da incontável criadagem obsequiosa do hotel, na presença do próprio maître... acompanhado de pessoas, de uma multidão de valises e de cofres, carrega num trono... a avó!” A rica e poderosa Antonina Vassilievna Tarassevitch, com setenta e cinco anos, morrendo, no entanto viva! Falava alto, “se mantinha reta e gritava com um tom de comando...” Petrificado e sendo reconhecido, Alexis, tem a certeza de que ela vai colocar a casa de cabeça para baixo!” Um andar inteiro havia sido reservado para essa grande senhora. “Ela se mantinha ereta como um i sem se apoiar em sua cadeira.” Alexis abriu “a porta de dois batentes e ela fez uma entrada triunfal.” Estavam todos reunidos e o impacto foi demasiado e inesquecível. Diante da figura da avó, o general parou estupefato. Paulina ficou possuída de “medo e perplexidade” e todos boquiabertos; mas ela os observava, desafiadora. “Era uma catástofre para todo mundo!” “Bem, eis-me aqui! Venho no lugar do telegrama!”Apesar dos pesares gostou do inglês, pois tinham resposta para tudo. Não quis nem saber das crianças “remelentas.” Agora queria passear e nomeou seu acompanhante, Alexis Ivanovitch. Os empregados do hotel tremiam ao avistá-la. Ciente do ocorrido com os barões fica indignada com eles. Contudo queria mesmo ir conhecer o cassino e sua comitiva a acompanha para surpresa de todos que lá estavam. Descrições hilárias sobre a bajulação da família e amigos são expostas, mas a velha senhora ataca a todos, sem piedade. Nas mesas se comprimiam quase duzentos jogadores. “A vovó contemplou tudo isso de longe, com uma curiosidade ávida.” Entretanto o que mais lhe chamou a atenção foi a roleta, e por ali colocaram sua cadeira, bastante próxima do crupiê principal. Pessoas afluíram para observá-la. “Uma mulher de setenta anos, enferma, que desejava jogar...” Alexis se esgueirou a seu lado. Antes de qualquer coisa, fez inúmeras perguntas que o rapaz lhe respondeu e explicou. Queria saber mais sobre o Zero e quando soube que ganharia trinta e cinco vezes o valor jogado, ficou fascinada, apesar da poucas probabilidades de ganho. Vovó joga no Zero muitas vezes e perde, perde... Ela continua insistindo apesar das advertências e prefere ser enforcada a mudar de opinião! Esta completamente obcecada pela roleta! “... de súbito, toc. Zero! , gritou o crupiê.” Continuou jogando pesado, até que perdeu! Mas “em seu rosto brilhava a convicção absoluta de ganhar” e ouviu novamente, Zero. Isso era, realmente uma raridade, tantas sequências de Zeros. Não se agitava mais, era como “se tivesse uma meta.” Agora jogou no vermelho e... ganha, novamente. Colocou, rapidamente, todo o ouro e cédulas na bolsa e foi embora! Radiante chegou a sua suíte, mas no caminho havia distribuído muitas moedas valiosas a várias pessoas desconhecidas e conhecidas. Ao general nem um tostão. “Que diable, c’est une terrible vieille! , “murmurou entre dentes Des Grieux ao coronel. Ordenou a Alexis que queria voltar ao recinto, após o jantar, e não necessitaria mais de empregados ou comitiva. Alexis rezava para que ela mudasse de idéia, mas em vão. Conjeturas das mais terríveis passavam pelas cabeças de seus familiares, horrorizados com a possibilidade de perder sua fortuna no jogo. Paulina, desesperada, pede a Alexis que entregue uma carta a Mr. Astley. “Então eles mantém uma correspondência” irritou-se o jovem. Estava abatido pelo ciúme. O general, precisando de alguém para culpar, chama Alexis e lhe passa uma descompostura. Diz que se comportou como guia. A senhorita Blanche olhou seu namorado com desdém, talvez perdesse tudo. Por fim, o general implora que o preceptor salve-o e retire sua vovó do cassino. A vovó não conseguira dormir nessa tarde e estava totalmente envolvida pelo jogo. “A roleta a obcecava.” Ela já era esperada e seu lugar ao lado do crupiê estava reservado. Continuou no Zero, mas ele não saia. “avozinha, eu tentava trazê-la de volta a razão, não posso responder pelos golpes do azar.” Des Grieux tentava aconselhá-la, em vão, mas ela perdera tudo e culpou o francesinho ordinário por seu azar. Ele a fizera mudar de número na última hora! Chamando-se de besta, perua e velha idiota, grita por chá e resolve voltar a Moscou imediatamente. Eram sete e meia da noite e o próximo trem partiria às nove e meia. Pede para Alexis trocar umas letras de câmbio senão não teria como sair do hotel e viajar. Quanto chegou, todos estavam junto à vovó. Paulina continuava ausente e “vovó os injuriava rudemente.” Vovó fala ao general que ele contava com sua morte, mas viveria até os cem anos. Paulina reaparece em cena e vovó a convida para morar em sua casa, em Moscou, quando quisesse, mas a adverte para não esperar nada daquele francesinho horroroso. “Paulina ficou vermelha”. As pessoas presentes sabiam de tudo, menos ele, Alexis. Ao ser carregada, resolve recuperar o dinheiro perdido e volta ao cassino, onde se jogava até meia-noite! Ocorre que perde definitivamente todo seu dinheiro, ou seja, mais de dez mil rublos! “Tinham em casa de tudo - um jardim, flores, macieiras e espaço... Não. Era preciso viajar ao estrangeiro! Oh! oh! oh!” Voltamos ao começo do livro, quando Alexis mais calmo, porém infeliz, recorda-se de tudo o que ocorrera. “Por isso retomo a caneta.” A vovó, de fato, havia retornado, mas perdera tudo. Os banhistas da cidade vieram vê-la jogar, pois havia adquirido fama no local. Era uma verdadeira fortuna que jogara fora, apesar de ter tido chance de recuperá-la por duas ou três vezes. No hotel, todos brigavam e se descabelavam. Para desespero do general, Blanche descartara-o de vez e partira com um principezinho. Astley partira para Frankfurt, a negócios. Paulina estava serena, mas não queria que Alexis sequer mencionasse seu amor por ela. Acreditava que tinha um segredo. O general implora ao jovem que fale com Blanche, mas já era impossível. Sobre vovó, acreditava que... “sim... sim... em nosso país, velhas deste tipo, nós as dobramos à força, sim senhor... Oh, que desgraçado eu sou!”Apesar da má sorte, Antonina ainda é rica, pois tinha três vilas, duas casas e algum dinheiro na Rússia, mas continuava negando-se a dar qualquer coisa ao general.
Alexis não queria acompanhar a vovó e vai procurar Paulina, contudo não a encontra e Des Grieux também havia sumido. Aí “dois e dois são quatro”. Quando voltou para casa, depois de desembarcar a vovó, vê uma silhueta no escuro: era Paulina! Des Grieux havia partido para a Rússia, a fim de apossar-se dos imóveis dados como seguro de seu empréstimo. Ela não iria à casa de vovó por não querer pedir perdão a ninguém. O jovem a aconselhou a ficar, então, com Mr. Astley, porém Paulina recusou. Sim, ela o amava. Alexis, como vovó, resolve ir ao cassino e tentar, com o pouco dinheiro que ainda possuía ganhar a quantia que sua amada precisava tanto. Como todo jogador perde muito e acaba ganhando trinta mil florins, mas passa a jogar mais! As pessoas em volta pedem para que pare de jogar e vá embora. Apesar disso, “experimentava um prazer irresistível em tirar e recolher as notas que se amontoavam a minha frente.” O “destino o movia”. Chegou a ganhar cem mil florins! Estava “possuído por uma sede de risco.” Mal chegava a acreditar em seu destino. Ganhara duzentos mil francos! Saiu com o andar desequilibrado, pelo peso do ouro em seus bolsos. Ao chegar, Paulina ainda estava lá e ele jogou seu dinheiro sobre a mesa para que visse que estava salva! Sua expressão era de ódio e ela lhe disse que “a amante de Des Grieux não vale cinquenta mil francos.” Essa mulher censurou-o por querer comprá-la. Pobre russo! Entretanto depois de alguma discução, abraçou-o e apertou-o contra ela. Sua cabeça girava e acordou somente às sete horas, com o sol brilhando. Ela estava lá e pediu para que desse seu dinheiro, mas ao fazê-lo joga tudo em seu rosto e sai correndo. Alexis sabia que sua adorada ainda estava doente. A culpa era da vaidade “que a impulsionava a não confiar em mim e a me ofender...” A jovem fugira para o Hotel Inglaterra. Mr. Astley, que se encontrava lá, ficou observando-os à distância. Ele cuidaria de Paulina e a trataria com um médico. Isso seria um escândalo! Todavia Alexis sente que, desde que estivera na mesa de jogo no dia anterior, seu “amor havia de alguma forma passado a segundo plano.” Em seu caminho de volta uma cena bizarra ocorre: a mãe de Blanche pede para que entre em sua casa, pois havia ouvido dizer que estava rico, com o jogo no cassino. A jovem estava se levantando e exclama “Ah, c’est lui! Viens doc, bêta! É verdade que tu as gagné une montagne d’or et d’argent? J’aimarai mieux l’or. E assim começa a sedução de Blanche sobre o pobre rapaz. Ela o convida para morar em Paris em ver les étoiles. “E foi assim que fui a Paris.” “Paris, o que dizer desta cidade? Tudo não passou seguramente de delírio, extravagância. “Aí permaneci um pouco mais de três semanas, terminado este período, meu lastro se reduzira a cem mil francos.” Dera quase toda sua fortuna a Blanche. “E com os cem mil francos que nos restam, tu o comerás comigo, meu preceptor!” Esta mulher era uma dilapidadora compulsiva, além de tirânica e cheia de soberba. Alugou um apartamento, mobiliando-o com o que havia de melhor e se queixava que com pouco dinheiro tivera de fazer muito. Durante duas noitadas cheias de estranhos, Alexis bancara o anfitrião, para seu horror. “Tudo aquilo me repugnava de uma forma definitiva.” O jovem russo vivia em um meio “o mais burguês e mercantilista possível, onde cada centavo era contado e pesado.” Em pouco tempo com seu dinheiro literalmente torrado, se retirou de cena! Os diálogos entre essas duas pessoas tão diferentes são muito instigantes e nos mostram a forma de pensar e agir da época e de hoje com pessoas golpistas. “Oito dias após nos instalarmos em Paris, o general chegou.” Encaminhou-se para o apartamento dos dois e não saia mais. O pior, sem dúvida, era que precisavam levá-lo a todos os lugares que Blanche achava mais interessantes e ela passou a defendê-lo! Havia ficado doente, na época da tragédia de vovó, mas, curado, fugira para Paris. Estava desnorteado e fixava-se em alguns temas, repetindo-os a toda hora. A vovó estava doente, de fato, e morreria, havia dito Mr. Astley, e quanto ao marques Des Grieux havia dilapidado tudo que o general possuía. Não queria nem ouvir seu nome. Blanche, desde que Alexis chegara, tinha um amante mulato, Alberto, e mesmo se casando com o general, mantinha o relacionamento. Essa fútil mulher, mesmo casada, não conseguira memorizar seu título e sobrenome em russo! Após vinte meses de esses fatos terem ocorrido, Alexis estava a seu ver “numa situação pior do que a de um mendigo.” “Perdi tudo da maneira mais singela... e não vou fazer um discurso moralista.” Continuou: “E o que imaginam que possam me dizer que eu já não saiba? O que há de certo é... que numa única volta da roleta tudo por mudar...” Havia perdido em outra cidade e sido preso, mas alguém pagou sua dívida e fora solto. Lacaio também fora. Com pouco dinheiro adorava jogar; sim, era o jogo que o atraia e não o dinheiro que pudesse ganhar. Voltando ao vício apostou pouco e ganhou. Colocou os cem florins ganhos no rouge... A quantia sobiu para oitocentos, chegando a mil e setecentos florins e “em menos de cinco minutos! Nestes momentos a gente esquece todos os fracassos passados!” Já não era mais um lacaio. Deste modo, decidiu partir para Homburg, onde está no presente, há dois meses. Todavia antes de pegar aquele trem, não se contendo, havia retornado ao cassino e perdido mil e quinhentos florins! Declarava: “Jogo pouco de cada vez e espero, faço cálculos, fico dias inteiros perto da mesa de jogo, a observar, chego a sonhar com o jogo...” Ele endurece e se afunda “no lodo”. Casualmente, em um de seus passeios cheios de devaneios, encontra Mr. Astley e sentam-se para conversar, mas o inglês já sabia de toda sua vida e seus desastres dos últimos vinte meses. Alexis, apesar de sua condição desafortunada, ficou feliz em vê-lo e o inglês observou nessa alegria seu velho amigo de sempre. “É verdade que o homem adora ver seu melhor amigo humilhado a sua frente; é na humilhação que repousa frequentemente a amizade.” Mr. Astley queria saber se além do jogo não se dedicava a mais nada e ele respondeu docemente... “Não...” Afirmou-lhe que havia se isolado e se afastado da vida. Alexis pede que pare de falar do passado e só tem mais uma pergunta: “Onde se encontra no momento miss Paulina.” Mr. Astley, zangado, diz que estava vivendo na Suíça; no entanto não queria discutir sua vida com ele, pois o nome dela em sua boca era uma ofensa ao seu senso de moral. Considerava-a o melhor ser do mundo, que o jovem russo nunca pudera desvendar. Morara com sua mãe e irmã, no norte da Inglaterra e herdara da avó falecida sete mil libras. O general também havia morrido há um mês, tendo sido muito bem tratado por sua mulher. Antes de morrer passara toda sua herança para ela! Alexis explica ao inglês a importância dos franceses na Rússia para as mulheres e jovens. “O francês, Mr. Astley, é uma forma acabada e elegante.” Ele e seu amigo, por serem homens, não pensavam assim, talvez por ciúmes. Racine era afetado, mas sem dúvida um grande poeta e charmoso. E afirma que “não há no mundo um ser mais aberto e confiante do que uma jovem russa...” “Um Des Grieux ... sob uma máscara, pode conquistar seu coração com uma incrível facilidade.” E a adorável Paulina passara um bom tempo resolvendo se queria um homem íntegro com o inglês ou um patife como Des Grieux. Interrogado por Alexis, Mr. Astley afirma ser um rico refinador e pensando bem “de um lado um refinador e, de outro... o Apolo de Belvedere. Não combinam.” Ambos não conseguiram nada dela. O inglês enfurecido admite que viera vê-lo a pedido de Paulina para conversarem longamente e, “de coração aberto, lhe transmitir todos... seus sentimentos, seus pensamentos, suas esperanças e ... suas lembranças!”Ela o amara e ainda o amava, enviando-lhe dinheiro para seu sustento. Joga-lhe a importância e ainda acrescenta, antes de sair, que se quisesse verdadeiramente mudar de vida lhe daria uma quantia razoável para recomeçar a vida... era tão jovem. Abraçam-se e Alexis pondera em seguir para a Suíça. Seguindo sua linha de pensamento lembrou-se, o infeliz, de que com um florim que lhe restara para jantar havia decidido entrar no cassino... “experimenta-se uma sensação particular quando, só, num país estrangeiro... sem saber o que irá comer naquele dia, arriscamos nosso último florim, o último, o último!” Ganhou e saiu do cassino com cento e setenta florins no bolso. “Eis o que pode significar o último florim.”
“Amanhã, amanhã, tudo acabará!...”

Excelente livro. Uma verdadeira maravilha de construção da psique dos personagens. O enredo é instigante e escrito de maneira tão realista e natural que não se pode parar de lê-lo. Este trabalho foi ditado para sua secretária, Anna Grigorievana, em 1866, numa época em que, mesmo solitário e endividado, precisava manter a família do irmão recém- falecido. O livro tornou-se um sucesso e permitiu que o escritor se colocasse em outra dimensão. Nessa época era comum que grandes escritores fossem para a Alemanha a procura de jogos e águas termais. Casado com Paulina, que o traíra e era sua paixão, une-se a Anna e viaja para Genebra. Em 1880 fez um inesquecível discurso sobre o destino de sua pátria. Depois de escrever Os irmãos Karamazóv, sua obra prima, morreu em 1881, aos sessenta anos. Deixou uma extensa e extraordinária obra literária.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

O VÉU PINTADO DE MAUGHAM


THE PAINTED VEIL
W. SOMERSET MAUGHAM

Este romance, publicado em 1925, aborda a sociedade inglesa dessa época e a visão que ela tinha, principalmente sobre o comportamento feminino. A figura principal é uma jovem de 22 anos, educada para ser elegante, bela e depois casar-se. Criada por uma mãe dominadora e ambiciosa é privilegiada por sua beleza, sendo sua irmã caçula, a comum Doris preterida na casa. Seu pai é um homem trabalhador, o chefe de família que traz o sustento em troca de nenhum afeto ou consideração. Chegando aos 25 anos, ainda solteira vê-se em uma situação difícil, pois sua irmã sem grandes atributos iria casar-se antes dela, com um rico jovem. Impelida pelo medo de ficar para trás e pela tirania de sua mãe aceita casar-se com um jovem bacteriologista, a quem não amava e não tinham nada em comum, para viver em Hong-Kong, na época colônia da Inglaterra. Os diálogos são aterradores para os dias de hoje, pois veremos como essas mulheres eram classificadas pelos ingleses da época, principalmente na China, onde pretendiam ter um poder muito grande. Após apenas dois meses de sua chegada, Kitty Fane apaixona-se perdidamente por um homem casado, charmoso e sensual. Carente, põe nas mãos de Charles Towsend sua vida e destino, absolutamente certa de que era correspondida. Um dia, Walter, seu marido, voltando para casa mais cedo descobre o relacionamento de sua mulher. Esse homem inteligente e dedicado à sua profissão, que adorava sua mulher apesar de saber que não era amado, não transige e a deixa sem muita escolha: ou ela iria com ele para uma localidade distante da China, para tentar vencer o vírus da cólera que dizimava a cidade ou admitiria que ela se divorciasse, um ato escandaloso na época, casando-se com seu amante, exigindo porém um carta escrita por sua esposa, Dorothy, que o deixaria livre para um novo relacionamento. Ocorre que Walter conhecia bem esse homem vaidoso e sabia que ela jamais deixaria sua família por uma jovem inexperiente. Confrontando o amante percebe com desespero que suas palavras de amor eram apenas belas palavras, nada mais. Sem saída, acompanha seu marido nesta longa marcha pelos confins da China, estabelecendo-se em um pequeno e simples bangalô. Aos poucos, conhecendo o único inglês que morava nesse local, é induzida a conhecer um convento de freiras francesas, que cuidavam de crianças órfãs e dos muitos doentes da região. Sem perspectivas, resolve juntar-se a elas e ajudar com que fosse possível. Passa a cuidar de crianças pequenas e sente-se, pela primeira vez útil e, ao vivenciar tanto horror, imagina que sua atitude não fora tão grave, comparada com tantas mortes e desespero e que seu marido, mesmo não a perdoando, poderia tornar a vida de ambos mais amena. Todavia, uma grande surpresa a aguardava, ela estava grávida e não saberia dizer de quem seria o bebê. Ao seu marido, por sua competência e temperamento, resolve dizer a verdade. Não sabia quem era o pai. Walter é um personagem triste, com agudo senso de implacável justiça, extremamente tímido e inseguro como amante. Isso soa para ele como mais uma sentença de morte. Passa a dedicar-se cada vez mais ao trabalho. No convento, Kitty descobre o quanto era amado e respeitado por todos. Ela reflete como poderia ter sido diferente seu destino, se tivesse tido mais experiência e sagacidade e menos vontade de apenas estar casada antes da irmã. São tempos amargos para essa heroína, que era admirada, pois pensavam que ela estava lá por amor ao marido. Walter acaba infectado pelo vírus que estudava em seu laboratório e sucumbe a doença. Sua morte é dolorida e Kitty lamenta-a sinceramente por sua coragem e bravura, mas não o amava e de certo modo isso a libertou de uma grande carga emocional. As freiras não permitiram que ela continuasse naquela cidade tão perigosa e contra sua vontade foi obrigada a retornar para Hong-Kong, no navio mais próximo. Apesar das poucas semanas transcorridas, acha-se mais madura e segura. Seu desejo era vender todos os seus bens e viver sozinha em um hotel. Não queria especular sobre o futuro, pois já havia sido tão imprevisível com ela. Logo que o navio atraca no porto de destino, ainda acabando de fazer suas malas em sua cabine, é procurada pela última pessoa que poderia imaginar- Dorothy Towsend. Essa mulher joga-se em seu pescoço, dando-lhe suas condolências e pedindo para que ela fique em sua casa até que nasça o bebê! (Kitty, ó Kitty, que tipo de heroína lhe fizeram?) Ela vê-se compelida a aceitar o convite e passa a conviver com a família, chegando ao ponto mais degradante de sua vida. Volta a cair nos braços de Charlie! Enojada consigo mesma, resolve regressar imediatamente para a casa de seus pais, que jamais a aceitariam de bom grado. Ela teria uma pensão para sobreviver com seu filho e não ser um fardo tão grande para a família. Entretanto, durante a viagem recebe uma carta da mãe, bastante formal, que seria bem vinda, logo em seguida uma da irmã que também estava grávida e finalmente um telegrama de seu pai avisando que sua mãe, enfim, havia morrido. Doente há muito tempo sucumbira, provavelmente, ao câncer, palavra proibida nesses idos dos anos vinte. Ao chegar, encontra seu pai lendo o jornal, aparentando estar mais calmo e aliviado de seu fardo. Kitty conversa com ele e fica sabendo que fora promovido, e iria partir para a Bahamas. Tendo decidido vender sua casa, pede para que a filha mude-se para Londres e tenha seu filho lá. Ele ajudaria financeiramente à jovem, mas gostaria de estar só. Ela se desespera e implora que lhe dê uma chance para demonstrar seu amor e seu carinho, que lhe haviam sido negados. Agora era seu único parente, sua única tábua de salvação e queria seguir viagem com ele. Introspectivo e com grande senso de responsabilidade acaba cedendo e concordando que Kitty e seu bebê o acompanhem nessa grande jornada.
A leitura do livro, como enredo, é bastante atraente, mas o que é escrito nas entrelinhas me parece aterrador. A composição dos pensamentos dos personagens é bastante preconceituosa, mesmo para a época. As mulheres são um tanto tolas, vaidosas ou assertivas, devotadas aos maridos e prontas para qualquer sacrifício que os beneficie. Os homens podem ter, livremente, várias facetas. Os chineses são seres quase inumanos por sua raça e aspecto. Os bons exemplos e grandes personalidades honestas são sempre de indivíduos provenientes da Europa e com uma vasta ascendência superior. Para quem estiver curioso sobre estes aspectos e para aqueles que são admiradores de sua enorme literatura é um livro interessante, que chegou a ser proibido quando da sua primeira publicação.


SOMERSET MAUGHAM
Nasceu em 1874, em Paris, vivendo lá até os dez anos. A morte prematura de sua mãe, aos 41 anos o deixou muito traumatizado e seu pai morre dois anos depois. William é enviado para Kent, Inglaterra, onde será educado por seu tio, vigário, em Canterbury. Foi duramente tratado pelo tio e ridicularizado pelos colegas, pois falava mal o inglês e tinha baixa estatura, herdada do pai. Isso faz com que desenvolva um agudo senso de observação e crítica. Estudou na Alemanha filosofia e ao voltar para a Inglaterra estuda medicina e passa a dedicar-se à literatura também. A escrita era um hábito que adquirira aos 15 anos. Seu livro Servidão Humana, quase uma autobiografia, é um dos mais famosos do século 20. Era bissexual. Viajou pelas colônias inglesas do Pacífico, conhecendo-as bem. É considerado um dos maiores escritores ingleses. Em 1927 volta para o sul da França, onde morre em 1965.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

O HOMEM SENTIMENTAL



DE JAVIER MARÍAS

“Não sei se devo contar-lhes meus sonhos”. Assim começa esse romance narrado por um tenor, em primeira pessoa, que nos guiará pelo mundo da realidade e dos sonhos.
Há quatro anos ele viajara para Madri, de trem, com mais três passageiros que se sentaram a sua frente. Era um cantor e teria uma temporada operística. Acostumado a analisar pessoas, passa a observá-los atentamente - dois homens bem diferentes um do outro e uma mulher de cabeleira castanha e lisa, cujo rosto não conseguira ver, pois dormia com seus cabelos tapando suas feições. Era impecável como se nada mais faltasse para terminá-la. Um dos homens, com mãos muito pequenas, parecia tranqüilo, vulgar e endinheirado, olhava a paisagem ou a si mesmo no vidro da janela, o outro era calvo prematuramente, mas rico, por suas roupas e postura. Seria um político, um prepotente. Seu olhar era ferino e os olhos cor de uísque. Isso tudo ele escrevia com sua caneta agitada. Em seguida, depara-se em um pequeno quarto de hotel com aquela mulher, pedindo que ficasse para sempre com ele, até sua morte. Ela indaga: e se morresse primeiro? Sua morte seria a dele também. Essa narrativa começara há quatro anos. O músico viajava pelas grandes capitais da Europa e se hospedava em hotéis de luxo, comparando sua solidão com a dos representantes comerciais. Contudo era uma pessoa mais sofisticada, rica e famosa; porém esse fato não ajudava no desalento das horas de ócio. As manhãs, enquanto ensaiava, eram os únicos momentos em que se sentia um homem como outro qualquer, com um destino certo para trabalhar, trabalho esse que não fora determinado por ele, mas por um empresário de ópera qualquer. Além do mais, hotel de luxo é sempre igual em qualquer parte do mundo. Estava na velha Madri, onde passara sua infância pobre e adolescência, mas não gostava dela. “Era rústica, divertida e não encerrava mistério.” Essas sensações apareceram com certa ordem em seus sonhos da manhã. Ao chegar, sentado no bar do restaurante, reconhece um dos homens do trem, pelas mãos minúsculas. Até então só pensara em Madri, talvez tivesse se tornado um residente naquela cidade. “Tudo para mim era estranhamente conhecido e alheio, ou íntimo e reprovável... tudo abominável e próprio.” O cantor analisava, minuciosamente, as características de seus sonhos, que para ele eram uma obsessão levada muito a sério. Era complexo contar tudo o que ocorrera durante esses anos. Era difícil “falar sem libreto”. O homem de mãos setecentistas o reconheceu e tinha um sorriso contente. A pessoa sorridente do bar encantara-se ao saber que nosso herói era cantor. Deveria ter adivinhado por seu tórax, pela postura e pelos peitorais. Dato revelara sua profissão: era conselheiro financeiro, mas na verdade não passava de um acompanhante de seus empregadores. Não se envergonhava disso e fazia companhia para o cantor, em sua própria cidade, a qual o deixava tão isolado. Dato explicara que escoltava Natalia, mulher do banqueiro Manur. Era uma mulher frágil e melancólica que encontrava nele um “amigo” ideal. O casal era riquíssimo, ele belga e ela natural de Madri, cidade que adorava por abrigar seu único irmão, agora residindo na América; sentia-se só e desacompanhada por esse fato. O tenor queixava-se de excessiva dispersão e Dato da excessiva concentração de sua vida. Acompanhar Natalia Manur não era um fardo, pois era uma mulher agradável, embora deprimida. Ao narrador “ele parece ser um homem paciente e determinado”. Com conversa tão pessoal, o tenor espantou-se ao mentir quando perguntado se era casado. Dissera que não, porém vivia com uma jovem, Berta. Moravam em Barcelona e ela sempre o esperava após suas longas apresentações. Nesse momento Natalia Manur apareceu no bar. O Leão de Nápoles, como era conhecido, estabeleceu uma amizade agradável com essas duas personagens, formando, os três, uma rotina benéfica em que ele jamais se sentia só. Era acompanhado por eles durante todos os ensaios e “olhava fascinado para aqueles dois devotos de circunstância que haviam caído do céu na cidade de Madri.” Formaram um trio inseparável para todas as horas do dia. Dato jamais impunha sua vontade ou presença, deixando o cantor brilhar diante de Natalia. O primeiro, diante da madrilena, portava-se completamente diferente do que fora no bar: conversador e divertido. Em certo momento, Manur surge com o dedo indicador levantado e imóvel olhando o tenor e isso faz com que Dato “sempre senhor das situações” apresente um ao outro. Esse dedo foi visto como uma advertência pelo cantor. Ele entendeu que estava ameaçando o ameaçante. Sendo flamengo e falando vários idiomas, inclusive o espanhol, sem nenhum sotaque ou dificuldade, deixou o herói com uma sensação muito irritante... Natalia e Manur casados e há muito tempo e ele não percebera nada no trem! Isso “saltava aos olhos”. O banqueiro era “pedante, correto, sentencioso.” Esse homem tão poderoso fazia-se de sedutor “a medida justa para ser ardoroso e dominador... a medida justa para sublinhar minha posição de bufão.” O cantor encontrara Manur apenas por três vezes e no terceiro encontro não deixaria de pensar nele e sonhar com ele. Teve certeza de que desejava aniquilá-lo e continuar vendo sua mulher, a sós. Passaram-se quatro anos, durante os quais não pensara nele próprio. Acreditava que Berta não o compreendia e sentia-se só, como sempre. “Meu caráter consistia em ceder... Eu só soube me negar às coisas ou lutar por elas em pensamento e, ultimamente, como digo, nem sequer penso.” Aqui o autor discorre longamente sobre a importância do mundo onírico e de não ser apenas um estado de suspensão das necessidades vitais. Para ele o sono e o sonho eram dignos de serem velados, contudo Berta não pensava como esse homem sensível. Virava-se na cama e dormia, mas não ele. Enquanto ele foi se tornando o Leão de Nápoles, Berta morria e “se tornou nada.” Recebera a notícia pelo atual companheiro, que lhe propunha doar seus pertences. Havia caído da escada, enquanto carregava os livros do tenor e, com um tombo espetacular, falecera. “De agora em diante, se isso é possível, crescerá no meu esquecimento.” “Como é possível aniquilar e superar um homem que você não conhece...” Isso era o que se perguntava atualmente. Sua temporada chegaria ao fim e sobre Natália também não sabia nada de concreto, apenas o que pudera observar – seus gestos, gostos, andar, atitudes e seus dentes perfeitos. Tinha medo de que ela estivesse apenas substituindo-o por seu irmão ausente. Sobre seus males e carências, ao contrário de Dato, não tinha a menor idéia, após uma semana de contatos diários. Só sabia que amava o irmão e não tivera amantes. Não sabia por que ela e Manur de Flandres levavam vidas diurnas tão separadas, simplesmente podia supor as razões. Imaginava-o em pijama de seda verde, observando Natalia deixar seu casaco e bolsa em uma poltrona, ir ao banheiro e se despir para entrar na cama de casal. Imaginava, também, como seria o amor deles, ou o desamor. Se ele notaria as diferenças causadas em seu corpo, que apesar de ainda belo não era mais esplêndido. Falar-se-iam sobre o dia a dia? Se havia saído novamente com aquele cantor? “Que sujeitinho. Não fui com a cara dele.” Seus devaneios quase não tinham fim, conjecturando as mais diversas situações como todos os apaixonados. Pensava também que um cheiro invariável ou rastros é que “dão origem à saudade.” Só de uma coisa tinha absoluta certeza: “A vida deles é de um modo que não admite mais improviso nem mudanças, tudo foi falado e estipulado faz tempo.” Apesar de aceitar que Manur não exigia mais nada, ele era, de fato, o proprietário de Natalia! Durante esse curto tempo de convivência, Natalia Manur não revelara qualquer detalhe de sua vida. Já o tenor contara desde sua infância pobre e sofrida, desconfiando sempre que seu padrinho e tio fosse seu verdadeiro pai, até sua adolescência, quando começara a ter um pouco mais de liberdade. O canto o salvara. Aprendera a ler as partituras e com isso pudera ganhar algum dinheiro. Ele e seu padrinho haviam morado em Madri, cidade que aprendera a desprezar. “Eu intuía que minha estada ali... dependia do seu capricho e não do seu afeto, nem do seu senso de responsabilidade nem da sua clemência...” Natalia Manur ouvia atenta e identificou sua vida atual com a do garoto responsável e sem mãe. Obcecado por eliminar o belga de Flandres, a lembrança de Berta e ainda continuar vendo Natalia diariamente, conjeturou que Manur cairia “por si só.” “Como cansa amar”, pensou. Esquematizara um plano eficaz e viável, ao mesmo tempo, para obter o amor de Natalia. O Leão de Nápoles gostava da fama e do lugar que conquistara com muito esforço. Morava num belo lugar em Barcelona e não amava mais Berta. Cheio de desejo, resolveu ligar para o quarto de Natalia no hotel. Era muito tarde e quem atendeu foi Manur. Desligou em segundos e, desesperado, ligou para a portaria pedindo uma puta para lhe fazer companhia durante a noite. Ela já aparecera em seu sonho daquela manhã. O encontro mostrou-se desastroso e nada ocorreu, contudo ele conseguira dormir mesmo sem ser velado por alguém, como gostaria. O Leão de Nápoles não queria tornar-se um cantor wagneriano, seres obsessivos e maníacos, e descreve a trágica epopéia ocorrida com Hörbiger, no papel de Otello, que cantava, sobretudo, Wagner. Queria sempre a orquestra muito afinada com ele e os lugares da platéia repletos. O drama foi se agravando e a cada temporada perdia o ritmo da voz e da arte. O círculo se fecha e os lugares vagos abundam. A cortina se abria cada vez mais tarde até que uma noite em Munique perde completamente a voz e o que se ouviu foi uma “nota agudíssima que ninguém nunca pode repetir...” Acabara sua carreira. Fora “o mais paciente, incondicional e sofrido espectador de si mesmo”, na tentativa de ocupar com empregados e com ele mesmo as cadeiras vazias. O tenor tinha a certeza de que na noite de sua estréia o artista mais promissor seria ele. Na manhã do grande dia, ele recebeu uma visita inesperada de Hieronimo (com o agá aspirado) Manur para o dejejum em seu luxuoso quarto de hotel. Fora um encontro forçado e constrangedor, pois o banqueiro falara abertamente de seu interesse por sua mulher. Com amizade ele concordaria, mas refutaria qualquer sentimento mais denso. O Leão de Nápoles enrubesceu e não soube o que dizer. Hieronimo prosseguiu falando: “Ontem à noite, pela primeira vez, o senhor fez uma coisa anômala: ligar em hora imprópria e desligar ao ouvir minha voz. Para mim, basta uma primeira ação anômala para saber o que vai acontecer em seguida... O senhor mandou chamar logo depois uma prostituta...” – O belga arrogante era sentencioso. Esses fatos mais do que graves, obriga-o a proibi-lo de continuar vendo sua mulher. Ele decidira por Natalia e não queria perder mais tempo. Havia, praticamente, comprado-a de seu pai em dificuldades. Salvara também seu irmão. O casal tinha um casamento de outro tipo, diferente dos normais. Amara sua mulher desde o primeiro momento em que a vira. Outros já tinham tentado seduzi-la, sem sucesso. “Tudo que ele disse eu ouvi no meu sonho desta manhã com tanta exatidão como foi dito então”, mas não saberia repeti-lo... “Nunca vi nenhuma outra pessoa com tanta vontade de perseverar em sua escolha e em seu amor.” O desejo físico do rapaz por ela aumentara, assim como o desejo de eliminar seu marido. O homem de Flandres havia salvado a família de Natalia da destruição econômica e ela havia sido dada pelo irmão inescrupuloso, Roberto, como sua mulher. Ele esperava ser amado por essa mulher e esta, por sua vez, ansiava pelo reerguimento financeiro do irmão para livrá-la de tal situação. Advém que isso jamais ocorreria, pois Roberto era perdulário e desastrado. Manur ponderou nesse dia: “O senhor deve imaginar quão infeliz ela deve ser, mas considere quanto eu também sou.” Adivinhando os pensamentos do jovem tenor afirma que sua curiosidade sobre o que se passava em seu quarto durante esses quinze anos, jamais seria satisfeita. Manur, ofensivo e defensivo, confirmou que nada poderia interferir nas regras já estipuladas de seu matrimônio. Continuou ainda “não sou um marido negligente... não me complique a vida nem complique a sua. Minha mulher não é um bom negócio...” Levantou-se, arrumou-se e partiu. O Leão de Nápoles acabou de se barbear, tapou a boca com esparadrapo para ficar calado no dia de sua estréia e sequer atendeu ao telefone que tocara. Berta havia morrido há três semanas e na caixa do correio encontra outra carta de seu viúvo. Estava desesperado, mudara-se da torre em que moravam e colocaria fogo em tudo que fizesse com que ele se lembrasse da mulher falecida. O tenor não se lembrava mais dela e não queria nada, absolutamente. O tenor temia que, a partir daquele momento, ninguém mais velasse seu sono nem ele o de Natalia. Ao acordar estava sozinho na enorme cama, pois Natalia não estava mais lá. Agora ele tomava soníferos fortíssimos para adormecer. Seu pensamento não havia sido vigilante “e ela certamente não precisou de mim... nem sequer deixou um bilhete... pois ao que parece saiu de viagem.” Sim, ela partira e levara quase tudo. Sua escova de dente voltara “a estar só como antes.” Poderia ter seguido para a Argentina, a fim de ficar com seu irmão, agora próspero. Poderia ser que o tivesse abandonado como fizera quatro anos atrás com Hieronimo Manur! Também sonhara com seu abandono. Ela já havia prevenido – “Quando eu por fim for embora, você não saberá.” Ultimamente Natalia parecia cansada de tanta viagem, estava com olheiras novamente e as peles em volta das unhas roídas. Já não sorria tanto e fatigava-se muito por ter de continuar viajando continuamente. Ela desinteressara-se pela vida, não o acompanhava mais aos recitais e parecia entorpecida para tudo e todos. O jovem passa a recordar suas atitudes e lembra que ela “era a mesma que vi aquela primeira vez e que me fez saber que Natalia Manur (da qual eu ainda não sabia o nome) estava acometida, como foi mesmo que ela disse?, de dissoluções melancólicas.” Esse drama acontecera há quatro anos. “O que mais aconteceu?... Oh, sim, também sonhei que beijava pela primeira vez Natalia Manur, quase sem saber, naquele outro quarto de hotel (não o de luxo) a que fomos na tarde seguinte da estréia de Otello de Verdi no teatro de La Zarzuela.” Manur já havia sido abandonado e ainda não sabia. Depois da estréia da ópera, ninguém que houvesse convivido com o tenor, durante esses poucos dias, apareceu em seu camarim. Nem mesmo seu padrinho, o senhor Casaldáliga. Depois de jantar com artistas e empresários, o rapaz passou horas em seu quarto, completamente só, ouvindo apenas o barulho dos caminhões de lixo, que emporcalhavam a cidade. Deparou-se com um bilhete de Dato e, apesar de desconfortável, foi ao seu encontro. Dato estava nervoso, mas contido. Deu-lhe o recado de Natalia que queria encontrar-se com ele, às 5 horas, da tarde já descrita. Aconselhou-o a não levar a sério o caso, já que todos poderiam sair perdendo. O Leão de Nápoles fora o eleito por Natalia, que jamais tivera um amante. Ao perguntar por que favorecia a ele e não ao belga, Dato respondeu com a voz emocionada: “É difícil saber quem sai favorecido por uma ação ou por uma omissão, mas a gente também se cansa de não ter preferência.” Depois disso nunca mais vira Manur ou seu assistente. Fechando a porta do quarto simples de hotel, tinha “pressa de chegar à alma dela” e a cobriu de beijos. “Verei antecipadamente na tua a minha morte... ao reconhecer-me em tuas feições rígidas, deixarei de crer na autenticidade da tua expiração, por dar à tua, corpo e verossimilhança à minha.” Ninguém estaria capacitado de imaginar a própria morte, delibera o tenor. Manur levara quatro dias para resolver se matar. Vestido a passeio e com uma pistola na mão atentou contra sua vida e estava caído no chão do hotel de luxo. Um casal bêbado, errando de quarto, o havia encontrado. “A mão havia vacilado e a bala destinada ao coração tinha ido parar no pulmão esquerdo sem danificar nenhum órgão vital.” O diagnóstico era de que viveria, mas isso não sucedeu. Morreu três semanas após a tentativa e Natalia permaneceu, a cada minuto, ao seu lado. Segundo Dato, no dia do desaparecimento, Manur apenas parecera ensimesmado ou indiferente. Nem no próprio dia do suicídio ele demonstrou o menor indício do que estava por ocorrer. “Quem sabe Manur tenha tocado naqueles vestidos... vai ver que até os beijou... e um pouco de barba impediu que eles deslizassem suavemente pela face. Manur vê a tarde cair... um ar primaveril que não é próprio de seu país agita levemente as cortinas... as mulheres já saem arrumadas... seus olhos cor de conhaque espiam moderada e pausadamente através das lentes... Manur desliga a tevê e acende a luz do banheiro, em cujo espelho se mira fugazmente... Senta-se e espera anoitecer... Não deixa transparecer nada.” Depois dessas conjecturas, o Leão de Nápoles estava com sono e perguntou-se com que sonharia depois de largar aquela caneta e deitar-se sozinho. Manur, na penumbra, tivera vontade de se liquidar. A mão do tenor também estava na penumbra, mas seria incapaz de fazer o mesmo.
[Maio de 1986]

Javier Marías nasceu em Madri, 1951. É considerado um dos romancistas mais relevantes da língua castelhana contemporânea e é membro da Real Academia Espanhola. Filho de um filósofo passou parte da infância com sua família nos Estados Unidos. Em 1970 escreveu seu primeiro romance Los domínios del lobo. Lecionou nas Universidades de Oxford, Reino Unido, Wellesley College, Boston, e em 1992 na Universidade de Madrid. Em 1997 é honrado com o importante premio Nelly Sachs. Seus artigos de imprensa têm tido grande influência na cultura de Espanha e América Latina. Os livros foram traduzidos em 44 países. Publicaram no Brasil os romances Amanhã na batalha, Negro dorso do tempo, Seu rosto amanhã, Febre e lança, além de O homem sentimental. Trabalho magnífico, onde ele percorre o universo onírico e sua importância em nosso estado de vigília. Entrelaça esses dois mundos com fluidez e perspicácia. Isso obriga ao leitor a ter uma concentração maior para poder abraçar seu raciocínio. Marías aborda, também, temas humanos mais simples e inerentes a todos como amor, ódio e vingança, além da fama, poder, sedução e manipulação. O romance, escrito na primeira pessoa do singular, jamais menciona o nome do herói, mas sim seus sentimentos mais profundos.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

ÁSSIA - TURQUÊNIEV



I.S. TURGUÊNIEV

Este romancista do século XIX nos oferece uma noveleta que lhe causou muitos problemas, na época em que foi escrita.
Em um ambiente romântico e idílico nosso herói russo chamado de N.N., com vinte e cinco anos, rico e independente, resolve sair do país e conhecer o mundo, instalando-se na minúscula cidade de Z., às margens do rio Reno. Estava na romântica Alemanha, onde, apesar da paisagem deslumbrante, interessava-se mesmo por rostos e pessoas. Monumentos e a natureza não lhe chamavam tanto a atenção. Um dia resolveu atravessar a margem e ver L., vila que ainda não conhecia. Encontrava-se amuado por ter rompido seu namoro com uma viúva experiente. Em L. participaria de um banquete para alunos de diferentes escolas, Kommers, onde todos usavam alegres trajes de estudantes. “Essa liberdade tão espontânea me tocava e atiçava.” Acidentalmente, encontra um alegre e cativante casal que morava no alto de uma colina, Ássia e seu irmão Gáguin. Ela era bela, altura mediana, belos olhos e cabelos escuros; ele também bonito. Eram russos e sem querer começou a conversar, mesmo não querendo dialogar com patrícios por um tempo. A simpatia foi mútua e instantânea. Tornaram-se amigos, os três, e N. descobriu que não estava mais apaixonado, mas feliz. Gáguin era dono de grande fortuna e queria ser pintor, contudo era do tipo que não levava nada a sério. “Era uma verdadeira alma russa, franca, honesta, simples, mas infelizmente um pouco indolente...” N. tornara-se íntimo de Gáguin e se vê pensando continuamente em Ássia, concluindo que ela não era, de fato, irmã do rapaz. Ao mesmo tempo uma enorme saudade da Rússia assola seu coração. Ássia parecia-lhe uma verdadeira jovem russa, “quase uma criada”; absorta em seu bordado cantava uma canção popular russa. Estava totalmente diferente do dia anterior, quando se mostrara altiva, risonha e provocadora com seu sorriso forçado. Visitando o novo amigo com freqüência, partem para fazer um estudo de desenho ao ar livre, mas predominou “quase o tempo todo aquele tipo de conversa pela qual o russo de bom grado se deixa levar.” Voltaram e encontraram Ássia da mesma maneira em que a haviam deixado e N. não percebeu nenhum coquetismo na jovem. Assim mesmo, reafirma que irmã de Gáguin ela não é. O tempo foi passando e cada vez mais as diferenças entre os irmãos foi se acentuando. Ela parecia, agora, amargurada. A educação dos dois era visivelmente diferente, pois ele era fidalgo e ela não parecia uma bárichnia, ou seja, uma moça de família nobre. “Aquela planta silvestre fora cultivada há pouco. Aquele vinho ainda fermentava.” Casualmente, N. confirmou suas suspeitas, pois sob um caramanchão de acácias ela chorava e lhe jurava que a só ele amaria. N. fica confuso e quis saber o porquê dessa situação. Dormiu mal e resolveu passar três dias no cenário idílico das montanhas. Voltando, encontra um bilhete de Gáguin urgindo para que volte a visitá-los. Contra a vontade, dirige-se para a casa dos amigos em L. O reencontro fora difícil para Gáguin, pois ele lhe revelou que Ássia era sua meia irmã. Era filha de seu pai viúvo com a antiga camareira de sua mãe. Após a morte da esposa esse homem extraordinariamente bom trancara-se no campo com o filho, que aos doze anos fora levado pelo tio para São Petersburgo, a fim de ter uma educação formal e conviver com pessoas de sua idade e condição social. Quando N. já era adulto seu pai adoeceu seriamente e queria ver o filho para contar-lhe que a menina magrinha de dez anos que lá morava era sua irmã. Fora levada para a casa do pai, aos nove anos, com a morte da mãe, a qual não quisera envergonhá-lo com o casamento proposto. Fora cuidada com muito amor, mas “na mais completa independência”. Assim seu “coração não se deixou corromper e a razão permaneceu incólume. Apenas sete anos marcavam a diferença de idade entre eles, ela tinha treze e ele vinte, com o encargo de cuidá-la. Foi colocada em um dos melhores internatos da Rússia, mas apesar de sua aguda inteligência não se adaptou. Era zombada pelas meninas nobres, porém nunca se curvara. Aos dezessete anos sai de lá e Gáguin teve a idéia de passar com ela dois anos no exterior. Ássia jamais tinha se interessado por qualquer rapaz, ao contrário, só amava o irmão. Segundo Gáguin ela “precisava de um herói, de um homem extraordinário, talvez um pastor pitoresco no desfiladeiro de uma montanha.” N. passa a compreender as atitudes que ele recriminava como exibição de si mesma, sua quietude e incapacidade de se conter. Ela o atraia. O contato com essa jovem faz com que tenha um brutal desejo de felicidade. Ássia descobre que tem asas, como os pássaros, entretanto não tinha para onde voar e N. gostaria que ela o amasse. Novamente, Gáguin procura N. e, preocupado, afirma que Ássia apaixonara-se por ele, que sofria e queria partir imediatamente. Ao ler o bilhete que mandara para N., os dois puderam se assegurar de sua fragilidade e ambivalência. O jovem tenta decifrar seus sentimentos. Ele a ama, sem dúvida, mas casar-se com Ássia de apenas dezessete anos e frágil seria uma grande ousadia. “Afligia-me por Ássia , seu amor alegrava-me e ao mesmo tempo desnorteava-me.” O peso desse enlace tornara-se tão grande que N. resolveu que não se casaria com ela e não diria que a amava! O encontro entre os dois amantes fora um desastre. Ela com medo e finalmente apaixonada. Ele a beijou, mas depois, inseguro, censurou-a por não deixar que aquele amor amadurecesse e aflorasse. Magoada e ferida ela desapareceu sem dizer uma só palavra. “Olhei-a boquiaberto – e sai.” Coberto de censuras N. procura Gáguin e esperam que ela volte, mas Ássia não aparece. Preocupados vão procurá-la, separados, e voltam em uma hora, como combinado. Enquanto a procura N. sente “um pesar dolorido, o amor – sim, o mais terno amor!” Isso dilacerava seu coração. Enlouquecido avista alguma coisa branca no rio e resolve, transfixado, voltar e falar com Gáguin. Ássia havia chegado e ele ponderou: “foram asas fortes e amplas que me ergueram... ouvi um rouxinol... tive a impressão de que cantava meu amor e minha felicidade.” Na manhã seguinte, ao chegar à casinha branca, não fora afortunado, eles haviam partido às seis horas para Colônia. E N. não havia pronunciado o que sentia por ela – eu te amo! Assim ele partiu. Apesar de ir ao encalço dos irmãos, vinte anos depois, nunca mais os vira. Era um solteirão infeliz, sem família. Restaram apenas os bilhetes de Ássia e o aroma de uma flor que lhe jogara da janela. Esse aroma de uma “planta insignificante”... “sobrevive ao próprio homem.”
Ano de 1857


Não tão conhecido no Brasil como Tolstoi ou Dostoievski, IVAN SERGUÊIEVITCH TURGUÊNIEV, forma com eles um tríade de grandes romancistas russos do século XIX. Filho de família aristocrática e riquíssima. Estuda em Moscou e Petersburgo, gosta de leituras românticas e traduz Lord Byron. Em 1838, em Berlim estuda filosofia hegeliana , vivendo entre o Ocidente e Oriente. Tem uma filha ilegítima e terá uma relação platônica com uma cantora. Escreve uma série de esboços rurais, que reunidos dão o livro Memórias de um Caçador. É entusiasta da abolição do regime servil. Sua vida é nômade com parca saúde. O auge de seu sucesso vem em 1862. Morre nas cercanias de Paris em 3 de setembro de 1883 é enterrado em S. Petersburgo.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

SHAKESPEARE E A ECONOMIA


GUSTAVO H. B. FRANCO - HENRY W. FARNAM

A ECONOMIA DE SHAKESPEARE
GUSTAVO H.B. FRANCO

Este interessantíssimo livro com textos de Gustavo Franco e Henry W. Farnam fala sobre a economia, no século XVI, quando ainda não tinha o nome ou a abrangência como hoje a conhecemos. Era o nascer do capitalismo.
Gustavo Franco, baseado na obra de Shakespeare, faz, através de seus escritos, uma análise profunda de como esse grande bardo estava vinculado às finanças e à economia em geral de seu período. Todas as suas peças eram escritas a fim de que ele se aproximasse mais do povo e para, em uma linguagem compreensível, entretê-los, desde a rainha Elizabeth e sua corte até as famílias de mendigos que acorriam para seu famoso teatro, O Globo. Para tal era imprescindível conhecer profundamente suas necessidades políticas, financeiras e sociais. As peças eram escritas para a população em geral, para que se identificassem com elas. Não eram publicadas, somente mais tarde, pois a língua ainda estava em formação e muitas palavras eram tiradas do latim, a língua culta da época, ou inventadas por esse gênio. Os teatros eram a única diversão oferecida para a população desse século e havia diversos ótimos autores que também escreviam, assim como ele. O Teatro era muito lucrativo para a corte, que cobrava generosos impostos sobre as apresentações. Uma peça para dar lucro deveria ser representada por muitas vezes e em algumas ocasiões eles paravam devido às pragas ou diferentes motivos, como incêndio. Shakespeare soube enriquecer como nenhum outro de seu tempo com essa função. Gustavo Franco esclarece alguns mitos da época que não eram verdadeiros, como a presença da rainha em sua casa de espetáculos. As moedas eram muito importantes em vista de seu valor intrínseco, mas mesmo isso foi sendo falsificado com o passar dos anos. Pouco ou quase nada se sabe sobre o grande escritor e o mais concreto está em seu testamento, que não foi redigido por ele. A importância do crédito era enorme, pois havia grandes mudanças, graças às descobertas de novos territórios e o desenvolvimento agrícola. Práticas comerciais e financeiras se acumulavam. Seu livro nos mostra o início do venture capital, privateering, bonds, e outros nomes agora tão usados, ligados nesses tempos à economia do teatro.
Realmente é um livro muito significativo, mesmo para quem não quer saber de textos shakespearianos ou economia como uma ciência. Belíssimo trabalho de pesquisa e fluidez.

A ECONOMIA EM SHAKESPEARE
HENRY W. FARNAM

A segunda parte do livro foi escrita por Henry W. Farnam, no início da década de 30. Foi ele quem notou as alusões à economia, contida nas peças shakespearianas, e após longo estudo demonstra, como nos diálogos e nas descrições dessas obras, o quanto se mencionava sobre essa ciência, como hoje é vista. É um relato interessantíssimo, pois Shakespeare, tendo nascido no campo, tinha grande conhecimento sobre essa atividade, bem como sobre o comércio das grandes navegações (O Novo Mundo, Índia e Ásia). Em sua obra podemos saber quais os principais produtos da época e quais eram usados comumente. Quando se muda para Londres, torna-se um citadino, cobrindo tudo o que se apresentava na intelectualidade. Trechos das peças muito engraçados e outros elucidatórios, nos surpreende pela modernidade em uma época em que o capitalismo começa a florescer.
A junção desses dois trabalhos excelentes e simples faz do livro uma leitura culta e muito agradável.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

MADAME BOVARY de GUSTAVE FLAUBERT










Este é um grande romance escrito no século XIX.
De algum modo se assemelha aos livros de seus grandes pares da época, mas tem muito de inovador. Nessa obra, Flaubert descreve admiravelmente bem a vida das pessoas simples do campo, assim como as de uma classe superior que gostariam de alcançar vôos mais altos e se projetarem de algum modo na sociedade. As descrições da natureza são fenomenais e pequenas frases soltas fazem toda a diferença: “Nada, contudo, era menos curioso do que aquela curiosidade.”
Trata-se da história de dois jovens bem diferentes, mas com o mesmo alicerce social. Charles deveria, segundo seus pais, tornar-se médico e assim ascender como pessoa, mas sendo despretensioso e pouco estudioso, envereda pelo caminho mais fácil, será inspetor de saúde. Casa-se cedo, por escolha de sua mãe, com uma herdeira bem mais velha do que ele, mas ela morre e, então desposa a graciosa e linda Emma, filha de um eternamente grato paciente. Emma é seu oposto. Educada em um convento, é apresentável e polida. Leitora voraz de livros românticos com heroínas apaixonadas e sonhadoras faz de sua vida uma meta para se tornar como elas, até adúltera se fosse necessário. Apesar de ser amada profundamente por Charles, obviamente não consegue corresponder a esse sentimento, por razões pessoais e por considerá-lo naïve, sem maiores ambições. Entretanto, para Charles amá-la perdidamente era sua missão e sua vida. Sentia-se o homem mais feliz do mundo por ter uma mulher tão formosa e refinada. “Quanto a Emma, ela não se interrogou para saber se o amava. O amor, pensava, devia chegar de repente com grande estrondo e fulgurações... Ela não sabia que no terraço das casas a chuva faz lagos quando as calhas estão entupidas e permaneceu assim... quando descobriu subitamente uma fenda no muro.” Essa fenda foi sua vida, seu matrimônio. Emma, uma figura que na época causou muito escândalo, não passava de uma jovem tola que queria ter um amor avassalador e ser objeto de paixão por alguém mais refinado, que realmente soubesse apreciar e retribuir seus anseios e eles não foram poucos.
Com o passar do tempo, o casal tem uma filha, a qual Emma despreza e relega aos cuidados da ama. Sua casa vai ficando cada vez mais sofisticada, assim como suas roupas e hábitos. A trama tem várias passagens muito divertidas, mostrando a presunção e pretensão de algumas pessoas como ela. São um farmacêutico, um escrevente, um homem sofisticado ou algum aluno de Direito que a admiram e agem de modo similar. “Ora – disse ele – não sabe que há almas constantemente atormentadas? Precisam alternadamente de sonho de ação, das mais puras paixões, dos mais violentos gozos, e atiramo-nos assim em toda espécie de fantasia, de loucura.” Essa é a lógica de um de seus amantes, a fim de conquistá-la. Ela gostou do que ouviu. A crítica que Flaubert faz contra o governo, os costumes e a hipocrisia da sociedade são inúmeras, sempre bem humoradas, além de sarcásticas. Os discursos são demagógicos e sem sentido prático. “ O agricultor, senhores, semeando com a mão laboriosa os sulcos fecundos dos campos... E precisaria eu, senhores, demonstrar-vos aqui a utilidade da agricultura?... Quem provê nossas necessidades? Quem fornece o necessário para nossa subsistência... faz nascer o trigo... com ele confeccionar um alimento tanto para o rico como para o pobre...”. E assim vai longe a demagogia e o povo aplaude!
Charles não consegue ver defeito nenhum em sua pacata vida. Está sempre feliz, apesar de trabalhar como um mouro e não ter mais tanta atenção da esposa virtuosíssima. “Charles acabava por dar mais valor a si próprio pelo fato de possuir tal mulher.” Suas dívidas vão se tornando a cada dia maiores, pois Emma gasta sem freios, com prazer e sem culpa. Gasta com ela mesma e com sua casa, que deverá ser uma extensão de seu corpo. No entanto Charles a aprova e assim vai dilapidando sua fortuna pessoal e de sua família.
Uma vez iniciada a ciranda de prazeres a Sra. Bovary não consegue dar um freio digno para si mesma e cada vez afunda mais seu psique e sua auto-estima. Ela é a heroína quase típica da época. Sem profissão, algumas mulheres sentiam um enorme vazio e acabavam por querer igualar-se às mulheres de livros picantes ou açucarados do momento e assim destruíam suas vida e das pessoas próximas. Em algum momento da história, Emma quer se redimir e se volta para a religião com o mesmo fervor que dedicou à volúpia. Mas isso duraria um breve período de sua jovem vida. Todo o erotismo do livro é descrito de maneira inteligente e imaginativa, tanto que as cenas mais picantes passam-se dentro de um fiacre, totalmente fechado, que percorre, aceleradamente, uma pequena cidade francesa, Rouen, de manhã à noite. Lá estavam Emma e seu jovem amante Léon. Flaubert mostra seu gênio impecável mesmo nos momentos mais tensos, quando um de seus personagens está perto da morte com uma perna amputada e o que se segue é um dos mais divertidos diálogos. Charles e Emma, de certa forma se completam, apesar de todas as manipulações da mulher. Na época do lançamento do romance, foi motivo de muita especulação quem teria inspirado Madame Bovary a ele; Gustave respondeu: Emma c’est mois. A narrativa cobre toda a trágica vida do Sr. e Sra. Bovary até o fim de seus dias. Flaubert discorre sobre os mínimos pensamentos humanos com uma habilidade invejável, pois seus personagens, apesar de simples, são complexos como seres humanos e podemos nos reconhecer neles, em suas ambições, vaidades, medo, amor e ódio. É um escritor realista que possuiu uma obra pequena, mas de altíssima qualidade, pois era um homem obsessivo pela palavra, pela construção das frases e pela elegância.
Flaubert nasceu em 12 de dezembro de 1821, em Rouen, Normandia, onde seu pai era um cirurgião de renome. Contudo ele seguiu o caminho da literatura. Fora um leitor ávido desde a adolescência. Em 1841 estuda Direito em Paris, mas depois de constatar que tinha epilepsia volta para a Normandia, em Croisset, onde se dedica inteiramente à escrita. Morre em 8 de maio de 1880. Madame Bovary é um de seus mais famosos romances.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

LIBERDADE À MEIA NOITE - ÍNDIA E GANDHI





























BREVÍSSIMO RESUMO DE
FREEDOM AT MIDNIGHT - (INDEPENDÊNCIA DA ÍNDIA E GANDHI)
DE LARRY COLLINS E DOMINIQUE LAPIERRE

Londres, véspera de Ano Novo, 1947
Era inverno e as ruas estavam desertas no pós-guerra. O povo inglês não tinha o que comer e como se aquecer, tampouco motivo para festejar o Ano Novo. Todavia o bisneto da rainha Vitória, Louis Francis Albert Victor Nicholas Mountbatten, aos 46 anos, fora designado pelo primeiro ministro Clement Attlee, para assumir o ritual de passagem para a libertação da Índia. Um vespeiro gigantesco. Attlee o nomearia Vice Rei da Índia, mas Louis não desejava tal honraria. Attlee se apoiava nos conselhos de Archibald Wavell, Marechal de Campo, que possuía as idéias certas. Todo o relacionamento com esse país começara em 1599, com a chegada de um pequeno navio de William Hawkins. Esse foi o primeiro passo. Ai inicia-se uma época de comércio entre as duas potências. Em 1757, Robert Clive conquista a Índia e inicia uma nova colonização no Oriente. Em 100 anos tomaram o poder! A chegada de jovens britânicos nobres e pobres significava um choque civilizatório. Muitos morriam com o calor e doenças tropicais e alguns voltavam, sem viço, mas ricos e poderosos. Tinha-se a convicção que Deus havia destinado aquela raça para governar e conquistar.
Índia, 1947
Uma frágil criatura prepara-se para partir em uma vila do Delta do Ganges, Noakhali.
Esse homem de setenta e sete anos, seminu, usando óculos era Mohandas Karamchand Gandhi, o responsável por aquele ato que estaria para acontecer. Sua cruzada moral de não violência tinha chegado ao ápice. Os poucos ingleses que haviam negociado com ele admiravam-no. Outros não o compreendiam. A meta de sua luta era a liberdade da Índia. Mas ela seria dividida de maneira irregular, pois havia um intricado sistema de pessoas e fés convivendo lado a lado. Gandhi sempre dizia que teriam de dividir seu corpo, antes de dividir a Índia. Gandhi, agora, partiria ouvindo sua voz interior. Andaria por 47 vilas do local, com seus pés descalços, contando apenas com quatro seguidores: sua sobrinha neta, Manu, de apenas dezenove anos, e mais três gurus. Havia duas grandes fés no subcontinente: o islamismo, que proibia a idolatria e cria em um só Deus, o Profeta e o hinduísmo, onde o Criador e a sua criatura eram indivisíveis, e Deus um espírito cósmico, cujas manifestações eram ilimitadas. A idolatria para os últimos era uma forma natural de expressão. Havia em seu coração uma trindade central – Brahma, Shiva e Vishnu: forças positivas, negativas e neutras, que formavam um Equilíbrio Absoluto. Depois deles, deusas e deuses, os mais variados para cada situação. Mas a principal barreira entre esses dois povos não era metafísica, mas SOCIAL. O hinduísmo ariano havia introduzido o maléfico sistema de CASTAS, culminado com os intocáveis, que não abrangia direito algum. As castas deveriam ser sempre respeitadas. Ligado ao conceito de castas, permanecia outro na base dessa religião, a reencarnação. Os intocáveis migraram em enorme quantidade para a religião mulçumana, porquanto teriam mais oportunidades e seriam mais respeitados. Contudo os hindus não esqueciam que eles eram os intocáveis. Hindus e Muçulmanos dividiam as vilas, esperando pela visita de Gandhi em Noakhali. Socialmente havia uma mistura entre eles, mas um casamento interracial era impensável. Havia, então, divisão religiosa, de castas, econômica e social. A veneração pelas vacas data dos tempos bíblicos da Índia Européia. No processo de migração eles dependiam da vitalidade de seus rebanhos, assim era proibida a matança de vacas, para garantir a subsistência dos homens, durante o período de fome. Como resultado em 1947 havia um enorme rebanho de vacas, sem nenhuma utilidade, 200 milhões de bestas, uma população maior do que a população humana dos Estados Unidos! Para os muçulmanos essa adoração pelas vacas era repugnante. Durante o governo inglês a relação entre os dois grupos era enormemente frágil. Um muçulmano de 41 anos, no ano de 1933, propôs a divisão desses povos. Seria a noroeste, onde eram predominantes. Ramaht Ali ponderou o nome de Paquistão, terra dos puros, para a nova região. Em Calcutá ocorreu uma rebelião por tal parecer. Turbas de muçulmanos atacaram e foram repelidos pelos hindus, sangrentamente. Nunca na história de Calcutá, houve 24 horas tão selvagens. Esse grande assassinato mudou a história da Índia!
Londres, janeiro de 1947
Louis Mountbatten julga que uma intervenção na Índia seria muito perigosa, pois não havia meios para um acordo pacífico. O rei e o primeiro ministro, todavia, insistiam em sua atuação como mediador. George VI seria lembrado como o monarca que reinara sobre o desmembramento da Índia, sem nunca ter posto os pés nesse fabuloso país. Attlee pertencia ao Partido dos Trabalhadores e não desejava que a Índia ficasse sob a Commonwealth, como ansiava o rei. De 1943 a 1945, Louis desempenhara um papel crucial durante a Segunda Guerra Mundial. A família dele e a do rei eram de origens alemãs e, na Primeira Guerra Mundial, foram obrigadas a mudar o sobrenome. Mountbatten era um homem brilhante - intelectual, filósofo e vigoroso, contudo precisaria de toda sua força para a nova investida, a divisão da Índia.
Noakhali
Em cada vila, Gandhi tinha a mesma rotina de pobreza e obstinação. Procurar abrigo em alguma mesquita e viver do que lhe fosse oferecido. Mas o tempo era uma obsessão para esse grande personagem. Cada minuto era uma dádiva de Deus e deveria ser usado a serviço do homem. Gandhi desejava a paz para a Índia, assim espalhava suas palavras pelos vilarejos e vilas e tinha idéias próprias para reorganizar seu país, bem diferentes das inglesas. Acreditava no valor do ato concreto. Gandhi tornar-se-ia o maior líder espiritual daquele país e, curiosamente, não pertencia à casta dos Brâmanes, mas era de uma posição inferior, os Vaisyas. Seu pai era um diwan em Kathiawar. Sua mãe era profunda devota e afeiçoada a jejuns. Como era de costume, casou-se aos 13 anos e aos 18, após a morte de seu pai, foi enviado para a Inglaterra, a fim de estudar Direito. Foi o primeiro membro de sua família a viajar para o exterior. Em Londres, sentiu-se extremamente infeliz devido à sua timidez excessiva. Além do mais era pequeno, esquálido e moreno. Não conseguindo articular uma sentença sequer, resolve tornar-se um gentleman inglês. Mudando de atitude começa pelo guarda-roupa requintado, tendo um tutor francês e contratando aulas de oratória. Nada disso funcionou, pois era pressionado por seu extremo acanhamento. Após se graduar como barrista em direito, voltou correndo para a Índia. Sua família frustrada manda-o para a África do Sul, para resolver problemas legais de um parente. Nessa terra hostil, Gandhi encontra os princípios filosóficos que mudariam sua vida e a história da Índia. A mudança desse homem deu-se uma semana após sua chegada. Viajando na primeira classe de um trem para Pretoria, um homem branco exige que ele e suas bagagens sejam retirados do trem. Esse foi o primeiro confronto brutal com o preconceito racial que sofreria. Deixado ao relento de madrugada, reflete solitário, sobre o acontecido e decide mudar e aprender a dizer não. Os indianos da África do Sul deveriam se unir e se opor na língua do opressor: o inglês. Uma semana mais tarde, em seu primeiro discurso aos indianos de Pretoria, convocou-os para várias decisões. Gandhi faz um voto: iria renunciar a todos os bens materiais e viver sua vida de acordo com os ideais de Ruskin . Essa decisão fora importantíssima, pois era um homem rico e conhecido na África do Sul. Ele trouxe sua família e a instalou com um grupo de amigos em uma fazenda de cem acres, perto de Phoenix, a 14 milhas de Durban. Aí formou uma comuna na qual todo trabalho tinha o mesmo valor. Em 1906 comunicou à sua esposa que havia tomado o voto de Brahmacharya . Ele tinha então 37 anos e se tornaria famoso pela desobediência civil e política da não violência. Segundo ele, a violência brutaliza o violento e amargura suas vítimas. Em 1906 o governo editou uma lei que obrigava os indianos a portarem um cartão especial de identidade. Gandhi protestou contra isso e juntamente com uma legião de indianos do local fizeram um ato silencioso de não violência. Isso desencadeou a primeira de suas muitas prisões. Foi inspirado pelos trabalhos maravilhosos de Henry Thoreau sobre a Desobediência Civil. Sua bem sucedida cruzada na África terminou em 1914 e, tornando-se outro homem, volta à Índia. A partir de 1920 Gandhi foi a consciência de seu Congresso e seu líder na luta pela independência. Sua nova tática era pedir aos indianos que boicotassem tudo que fosse inglês: emprego, escolas, leis, soldados e honrarias. Queria enfraquecer a economia do conquistador. O forte da economia era o algodão e cada um deveria produzir seu tecido em casa. Ensinou-os a usar latrinas, ao invés do campo aberto e a higiene passa a ser o fator mais importante para a saúde. O tecer tornou-se quase uma cerimônia religiosa. O produto do tear foi o símbolo do movimento. Falando seis vezes por dia em todas as remotas vilas da Índia, influenciou milhões de indianos. Isso reforçou a brutalidade inglesa e em 1922 escreveu ao Vice Rei advertindo que intensificaria sua campanha. Milhares o seguiriam e milhares iriam para a cadeia. Gandhi sentiu que muitos não compreendiam o significado da não violência. Em 1930, esperando novamente sua voz interior, resolveu seguir rumo às praias, com uma comitiva que se tornava a cada dia maior. Sua morosidade era enervante aos ingleses, que não sabiam o que poderia ocorrer. Depois de muitas milhas, ao chegar à praia, pega cristais de sal doados pela natureza, que deveria ser comprado dos ingleses, com taxas. Incita a todos que repitam esse ato. Assim o sal torna-se outro símbolo da liberdade. Isso causou um verdadeiro turbilhão no país.
Londres, 1947
A Inglaterra impunha a presença da elite do cristão branco em mais de um terço dos habitantes da terra. Churchill, apesar do enorme império que corria o mundo, tinha um enorme e violento amor pela Índia. Ele acreditava na mão firme e paternalista sobre aquele país, onde havia passado anos de sua juventude. Quando o novo Primeiro Ministro declarou a decisão de libertar a Índia até junho de 1948, Churchill lamentou profundamente.
Churchill havia chamado Gandhi de faquir seminu. Porém as conseqüências de sua Marcha do Sal haviam sido tão perturbadoras, que o vice-rei, Lord Irwin, resolvera recebê-lo em seus trajes típicos para que pudessem discutir sobre política. Em oito encontros decidiram o pacto Gandhi-Irwin. Os indianos seriam soltos e Gandhi iria à Londres debater o futuro da Índia. Seis meses depois, ele entra no palácio de Buckingham para tomar chá com o Rei-Imperador, usando sandálias e envolto em um chalé de algodão branco! A mesa-redonda foi um fracasso. A Inglaterra estava imatura para libertar a Índia, mas a semente havia sido plantada. A atenção do mundo voltara-se para esse assunto e a figura carismática de seu líder. Apesar do seu sucesso pela Europa havia regressado de mãos vazias. Com a chegada da Segunda Guerra Mundial, esse homem está mais do que convicto das estratégias da não violência. Os seguidores de Gandhi estavam ansiosos para tomarem parte na batalha, como homens livres. Gandhi e seus discípulos estavam em lados opostos, mais uma vez. Churchill era contra essa participação. Somente em 1942, quando a Índia estava sobre forte pressão japonesa que o Primeiro Ministro enviou uma proposta para Nova Deli. Gandhi recusou qualquer ajuda que determinaria mais dependência da Inglaterra. Isso causou mais uma prisão. Ao todo ele ficou 2.338 dias na cadeia, entre Índia e África do Sul. Depois desse encarceramento, permaneceu 21 dias em jejum, porém, no meio dele, ficou tão mal que prepararam seu funeral. Todos estavam prontos para sua morte, menos esse alquebrado homem de setenta e quatro anos. Sobreviveu. Em 1944, a mulher que havia desposado morreu em seu colo, sem que pudesse ter feito qualquer coisa. Isso repercutiu em sentimento de culpa e sua combalida saúde deteriorou-se ainda mais. Churchill resolveu soltá-lo para que não morresse em uma prisão britânica. Gradualmente, foi recuperando-se.
Aeroporto de Northolt, Inglaterra, 1947
Charles Smith coloca em um avião os pertences dos Mountbattens, assim como inúmeros documentos e papéis relacionados à libertação da Índia, que deveria ser federativa com um governo central fraco. Eles partiram, mas Mountbatten não queria ir para a Índia e a Índia não o queria.

Haimchar, Noakhali
Gandhi continuou em sua marcha para diminuir o sofrimento dos indianos. Todavia um drama pessoal o acompanhou durante todo o tempo. Esse drama produziu a mais grava crise pessoal de sua vida. Gandhi havia lutado por quarenta anos para sublimá-lo e controlá-lo: o sexo. O foco de seu sofrimento era sua sobrinha neta, Manu. Ele havia jurado o voto de castidade, mas quando Manu confessa-lhe que não tinha nenhum desejo sexual, resolve envolve-la em grandes experimentos. Dormiriam juntos e se nenhum dos dois sentisse qualquer emoção sexual, poderiam formar um par perfeito. Gandhi acreditava que os órgãos sexuais de um verdadeiro Brahmachari eram meros símbolos de seu sexo. Trinta anos de disciplina foram necessários para que ele se considerasse casto. Um boato, espalhado pela Liga Mulçumana, de que ele era massageado e cuidado pela sobrinha neta, e isso era verdade, se espalhou e a crise atingiu seu clímax em Haimchar, a última parada de peregrinação de Gandhi. Pediram que não prosseguisse para a ortodoxa comunidade de Bihar, mas ele não acatou a decisão. Foi Manu quem se submeteu a ficar para trás, a fim de que ele pudesse concluir sua missão.
Em seu imaculado uniforme branco, Mountbatten parecia uma estrela de cinema. E assim foi conduzido pelo vice-rei, Lorde Wavell, ao seu escritório. Esse homem declarou-lhe que o trabalho dele seria impossível, pois haviam chegado a um impasse impossível de ser resolvido. O palácio de Nova Deli era tão pomposo como um Versailles, em uma região paupérrima como a Índia, abarrotada de pessoas famintas. Louis Mountbatten seria o vigésimo e último representante de uma dinastia prestigiosa. Edwina Mountbatten, como seu marido, era dotada de muita beleza. Além do mais, era herdeira de grande fortuna vinda do avô de sua mãe. Era tímida e se ofendia facilmente. Estava constantemente preocupada e não conseguia dormir sem comprimidos. Contudo era uma reformista social, preocupada com os pobres e desvalidos. Os indianos iriam aprender a gostar de seus sentimentos e sinceridade. Em março de 1947 o casal foi reconhecido como vice-reis. Direto e simples, dirigi-se aos indianos pedindo ajuda e boa vontade. Decidira ter um governo bem diferente de seu antecessor. A operação Casa de Loucos seria substituída pela operação de Sedução. Queria ser acolhido pelos líderes indianos e pelas massas. Ele possuía uma capacidade obsessiva pelo trabalho. Mudou a intensa segurança pelos passeios sozinhos com sua mulher, acenando para o povo. Foi visitar, sem cortejo algum, a casa de um indiano, Jawaharlal Nehru. Ordenou que as portas do palácio estivessem sempre abertas para os indianos. Sua mulher mudou a rotina dos banquetes, oferecendo aos convidados a comida indiana vegetariana, que poderiam comer com seus dedos, se assim o quisessem! O The New York Times noticiou que nenhum outro vice-rei havia conquistado tanta confiança e respeito do povo indiano como Mountbatten. Conflitos sangrentos, os mais variados, seguiram-se logo após sua chegada. A liga Hindu-Muçulmana era em verdade uma assembléia de inimigos. Louis deduziu que a data de junho, 1949, seria longa demais. Teria de agir em semanas, pois a guerra-civil já estava à sua porta.
Nova Delhi, abril de 1947
O destino da Índia não seria decidido em mesas de conferências, mas sim em conversações privadas. Participariam delas Mountbatten e mais quatro líderes indianos. Ele desejava que os líderes concordassem com alguma forma de unidade. O primeiro a chegar foi Nehru, que era uma figura tão impressionante quanto à do novo vice-rei. Era o único líder que ele já conhecia. Seu charme, graça e humor rápido lhe eram bem conhecidos. Nehru era Brâmane e fora enviado à Inglaterra, aos dezesseis anos, para completar sua educação, Lá ficara por sete anos e voltara um homem quase inglês. Contudo também sofrera descriminação racial por parte desse povo, como Gandhi. Ao tentar entrar como membro do Clube Inglês, fora barrado pela cor de sua pele. Sua postura política e social lhe valeu nove anos de prisão inglesa: a melhor escola de treinamento político do mundo, naquela época. Seus maiores sonhos eram o parlamentarismo democrático da Inglaterra e o socialismo econômico de Karl Marx. Sonhava com uma Índia livre e produtiva. Era um racionalista frio e declarava-se agnóstico. Apesar disso, o místico povo indiano o aclamava, pois era um esplêndido orador e escritor. Para Nehru, Gandhi era um gênio e de certo modo foi seu guru. Entre eles havia um forte sentimento pai e filho. Ele também admirava Mountbatten e ao discutirem o destino do país concordaram em dois pontos importantes: uma decisão rápida era importante para evitar um banho de sangue; e a divisão da Índia seria uma tragédia. Teria de convencer os outros líderes a manter a Índia unida, caso contrário teria de dividi-la, como queriam os muçulmanos.
Novamente Mountbatten e Gandhi discutem sobre o assunto. O vice-rei havia lhe proposto buscá-lo de avião, mas ele rejeitou e foi como sempre viajava: de trem na terceira classe, perto de seu povo. Mountbatten e sua mulher perceberam que ele estava profundamente infeliz. Haviam roubado seu velho relógio de pulso, mas não era o objeto que interessava, mas o ato de infidelidade cometido. O vice-rei, querendo saber melhor quem era esse líder, pede para que lhe fale sobre si. Encantado começa a narrar sua vida e seus episódios mais relevantes. Falou por duas horas. Novamente mostrara-se uma pessoa difícil de negociar, pois a verdade era-lhe absoluta e ao mesmo tempo relativa. Um de seus discípulos, uma vez lhe dissera: “Gandhiji, não compreendo você. Como pode dizer uma coisa a semana passada e outra totalmente diferente esta semana.” – “Ah,” Gandhi respondeu “porque eu aprendi muito desde a semana passada.” (de todas as suas citações essa é a que mais gosto!) Gandhi havia reiterado que a divisão da Índia só se daria sobre seu corpo morto. Quais alternativas restariam, pergunta-lhe Mountbatten. Sua solução era absurda: “Coloque trezentos milhões de hindus sob as regras dos muçulmanos, pedindo a seu rival Jinnah e à sua Liga Muçulmana para formar um governo. Então tenha poder sobre esse governo. Dê a Jinnah toda a Índia, ao invés de parte dela, como ele quer.” Essa foi sua proposta. Louis pediu-lhe uma segurança formal sobre isso e iria estudá-la.
“Porque esse homem está me intimidando?”, pergunta-se Louis sem acreditar no fato. Seu visitante parecia mais um senador romano do que um político indiano. Vallabhbhai Patel era um chefe oriental de mão firme e implacável. Era prático e pragmático, mas um negociador realista. Não tinha emoções. Sua casa era empilhada de livros e era um advogado famosíssimo. Tinha conseguido sua fama, através de muito sacrifício, pois sua família era pobre e ele estudara na Inglaterra com seus próprios meios financeiros. Ao voltar vitorioso, procurara Gandhi e oferecera-lhe seus serviços, tornado-se o segundo homem mais importante na Índia junto com Nehru. Louis rasga suas exigências, porquanto eram impossíveis de serem realizadas. Mountbatten mostrou-se mais forte nessa pendência.
Os intocáveis eram um sexto da população indiana e Gandhi fez da causa desses desfavorecidos a sua própria causa! Tentava fazer com que a população tivesse consciência de sua miséria e das injustiças que lhes eram impostas. Ele havia estado errado quando, poucos dias antes, assegurara com firmeza que o Partido do Congresso estava preparado para fazer qualquer coisa que evitasse a separação. Seu povo desaprovara dar o poder para Jinnah, pois para tudo haveria um limite. Assim, Gandhi vê-se perdendo sua causa. O vice-rei encontrara-se com Jinnah e o desdenhou imediatamente, acreditando que ao vê-lo pela primeira vez percebeu que não haveria outra solução, a não ser a divisão do país. Quando começou a falar, Louis interrompeu-o e, como fizera com Gandhi, pediu-lhe para que falasse sobre ele. Jinnah congelou diante dessa idéia. Durante duas horas foram uma série de monossílabos e frieza.
Jinnah era um brilhante advogado, formado em Londres, e tendo obtido grande sucesso profissional decidiu virar político. No início, postulava a união de hindus e muçulmanos. Rahmat Ali gostaria que esse homem liderasse um movimento para a formação do Paquistão, mas ele refutou dizendo ser um sonho impossível. Por uma década trabalhou para manter hindus e muçulmanos do Congresso unidos em confronto com os Britânicos. Ele dizia que a desobediência civil era para os iletrados. Em 1937 tornou-se líder das massas muçulmanas na Índia. Todavia ele bebia, comia porco, barbeava-se diariamente e evitava qualquer mesquita. Esse homem desprezava as massas indianas que comandava. Ele se revelava em pompa, mas sua vida era um modelo de disciplina e ordem. Suas únicas leituras eram livros de lei e jornais do mundo inteiro. Entre os muçulmanos não tinha amigos e vivia somente para seu sonho do Paquistão. Parecia um homem forte, mas na verdade era muito frágil e doente. Mountbatten e Jinnah mantiveram, em abril de 1947, seis encontros bastante críticos. O carismático líder inglês não estava conseguindo nada com esse personagem frio e resoluto, que só pensava em criar seu novo estado e nada o demoveria dessa idéia. Só em um ponto concordavam: a pressa na resolução. Ele insistia que os muçulmanos da Índia eram uma nação distinta com cultura, língua, literatura, códigos e arte próprios. Para ele essa divisão proposta era um curso natural de eventos. Mountbatten ficara chocado com sua rigidez e obstinação. Para ele Jinnah era um psicótico. Louis aspirava à união da Índia, mas não decaindo em caos e violência. Ele teria de se reunir com Nehru e Patel e convencê-los do novo princípio, pois a Operação Sedução estava fracassando. Essa decisão conduziu a um dos maiores dramas da História Moderna. Punjah e Bengala teriam de ser divididas aos pedaços e o resultado seria uma aberração geográfica de duas cabeças separadas por 1500 quilômetros desde os picos das montanhas do Himalaia, tudo isso território puramente indiano. Além da distância geográfica, a distância psicológica entre os povos também seria inacreditável. Além da mesma fé em Alá, esses dois povos não tinham mais nada em comum. Os bengaleses eram baixos, escuros e ágeis; sua raça era parte da massa da Ásia. Os punjabis, com trinta séculos de conquistas, eram descendentes das estepes da Ásia Central, com traços arianos da Rússia, Pérsia, Turquia e desertos da Arábia. Nada, definitivamente, os ligava. Punjab era a jóia da coroa da Índia. O país da fortuna e dos Cinco Rios. Por séculos, suas águas foram a passagem para a Índia. Krishna e o guerreiro, rei Ariuna, pertenciam a esses lugares. Quinze milhões de Hindus, dezesseis milhões de Muçulmanos e cinco milhões de Sikhs, com seus turbantes coloridos enrolados sobre os longos cabelos, dividiam a mesma vizinhança, com suas 17.932 cidades e vilas! Eles tinham a mesma língua e mesmo orgulho em suas personalidades. Os ingleses haviam construído uma imensa malha de irrigação que elevou o nível econômico do local. Havia, igualmente, uma enorme rede de trens. Essa separação seria uma terrível herança para os povos da Índia. A divisão de Bengala seria outra tragédia. Ela possuía trinta e cinco milhões de Muçulmanos e trinta milhões de Hindus espalhadas por uma área maior do que alguns países europeus. Suas raízes históricas vinham da era pré-cristã, quando o Budismo floresceu em Bengala. Bengala tinha duas partes religiosas: muçulmanos ao leste e hindus ao oeste. Ela era a segunda cidade do império Inglês, atrás somente de Londres. Ainda era o primeiro porto da Ásia – Calcutá – local do terrível massacre de agosto de 1946. O governador de Bengala previra que, com a divisão, Bangladesh tornar-se-ia a maior favela rural da História! O Paquistão de Jinnah estava fadado a destruir os habitantes da Índia.
Jinnah estava condenado à morte por seus pulmões. Isso era mantido como o maior segredo da Índia, tinha tuberculose em fase terminal. As radiografias ficavam escondidas no cofre do Dr. Patel, seu médico. Ficara doente aos setenta anos. Jinnah deveria estar internado em um sanatório, mas com seu prestígio e poder estava negociando livremente seu sonho. Ocorre que, se seus adversários políticos tivessem descoberto o segredo, o destino da Índia teria sido outro. A palavra velocidade nas negociações para ele significava concretizar seu desejo, o mais rápido possível antes de sua morte.
Dos doze homens sentados a mesa de negociações do palácio de Mountbatten, somente dois eram indianos. Louis era o mais jovem dentre esses governadores ingleses da Índia, todos riquíssimos e poderosos. Ele começa pedindo para que cada um deles descreva a situação em sua província. Oito relataram perigo e áreas com problemas, mas ainda sob algum controle. Sir Olaf Caroe falou primeiro e aconselhou que, se não fossem cautelosos, teriam, em mãos, uma crise internacional. Mountbatten distribuiu entre eles o rascunho do Plano Balkan de separação, efetuado por Lord Ismay, seu Chefe de Estado. Em choque, observaram o documento, pois eles eram os apóstolos e arquitetos da unidade indiana. A maioria passara sua vida dedicada ao reforço de alianças na Índia. O vice-rei queria que o mundo soubesse que a Inglaterra tinha feito todo o esforço possível para manter a Índia unida. Esses governadores não tinham nada a propor-lhe e não viam possibilidade de paz! Esse banquete seria o último servido na colônia inglesa.
Mountbatten resolvera suspender temporariamente as conversações e dirigia-se para Peshawar, a capital da Província da Fronteira Noroeste. Uma multidão incalculável de muçulmanos o esperava, chamados pelos líderes da Liga Muçulmana. Eles haviam se virado contra Ghaffar Khan, Gandhi e o governo, instigados pelos agentes de Jinnah. Essa imensa população cumprimentava Mountbatten, sua esposa e sua filha de 17 anos, Pamela. Isso provava que o suporte da província pertencia à Liga Muçulmana e não mais a Gandhi. Foi sugerido que se apresentassem diante da multidão, a fim de acalmá-los. Diante desse mar de turbantes, o casal real, no primeiro momento, sentiu-se totalmente atordoado com tal visão surrealista de gente, pó, sujeira e calor. Era um instante decisivo na Operação Sedução. Nesse cenário havia quarenta mil rifles! Contudo, por uma feliz coincidência, o vice-rei usava uma camisa de manga curta na cor verde. Essa era a cor do Islã e isso foi tomando como um gesto de solidariedade para com a grande religião. Ao mesmo tempo sua esposa acenava para eles. A multidão acalmou-se imediatamente. “Mountbatten Zindabad!” (Longa vida a Mountbatten) gritava a multidão. Quarenta e oito horas depois, eles aterrissavam em Punjab. Sir Evan Jenkins conduziu o par para uma pequena vila, onde “tiveram seu primeiro contato com os horrores que varriam a Índia na cruel primavera de 1947.” Por séculos o lugar havia sido habitado em paz por 2.000 Hindus e Sikhs e 1.500 Muçulmanos. Todos os Sikhis e Hindus haviam sido mortos ou fugido aterrorizados, durante a madrugada. Uma horda de muçulmanos havia descido como lobos, incendiando as casas de hindus e sikhs. Ao confrontar-se com esse problema, avalia a necessidade imperativa de pressa em uma resolução e a única seria separação. Gandhi seguia com grande pesar o debate do alto comando do seu partido. Todo seu sofrimento havia sido em vão. Ele desejara um novo rosto para a Índia, através da não-violência. Isso seria um massacre. Gerações de indianos por vir pagariam o preço do erro que iriam cometer. Mas, infelizmente, Gandhi não tinha uma nova proposta, nem Mountbatten, Nehru e Patel. Uma catástrofe cairia sobre a Índia. Nehru seria o porta voz da decisão sobre a divisão, desde que as grandes províncias de Punjab e Bengala fossem divididas. Ele também estava contrário a decisão de seu guru. Em 2 de maio de 1947, Lord Ismay levava o documento sobre a divisão da Índia, para aprovação de Sua Majestade. Ocorre que Mountbatten ignorava o principal fato que poderia ter mudado esse destino: a doença do ardiloso e cruel Jinnah.
Exausto o vice-rei parte para Simla, uma cidadezinha no Himalaia, formada pelos ingleses, no teto do mundo. Louis recebe uma enxurrada de telegramas de Attlee. Se seus planos fossem aceitos a Índia seria dividida em três nações independentes e não duas. Mountbatten havia inserido em seu plano uma cláusula que permitiria a 65 milhões de hindus e muçulmanos de Bengala juntar-se em um país viável, com o grande porto marítimo de Calcutá como sua capital. Entretanto não havia discutido com Nehru e Patel. Eles aceitariam o plano que poderia custar-lhes o grande porto de Calcutá? Se não, iria testemunhar o grande tolo que fora, aos olhos da Índia e do mundo. Para sua segurança, convidara Nehru e sua mulher, com o intuito de discutirem tal posição. Seu staff fica horrorizado ao saber que Nehru seria informado antes mesmo do que Jinnah. Se este ficasse sabendo, sua posição seria destruída. Nehru, ao ver o plano concebido, fica atônito ao prever a Índia destroçada e privada de seu principal porto, com moinhos, fábricas e aciarias. Sua amada Kashmir, um estado independente, governada por um déspota muçulmano. O plano tornaria o país em um aglomerado de estados hostis. Furioso pronunciou: “Acabou!”
O plano era um desastre e não agradaria ao principal elemento, o Partido do Congresso. Felizmente para o vice-rei isso não afetaria sua amizade com Nehru. O vice-rei seria obrigado a redesenhar um plano revisado que apresentaria somente uma escolha – Índia ou Paquistão. Uma Bengala independente estava fora de questão. Menon, um indiano, foi informado que antes do cair da noite, teria de refazer o mapa que daria à Índia sua independência. Essa composição seria feita em apenas seis horas. Os elementos essenciais deveriam ficar como estavam.
Nesse ínterim, Manu, a sobrinha neta de Gandhi, adoece gravemente com crise de apendicite. Mesmo sendo seguidor da medicina natural, ao ver seu estado e contra sua vontade, resolve levá-la a um hospital para ser operada.
Sob a Inglaterra havia duas Índias: uma Índia com suas províncias, administrada pelo governo central em Delhi, e a outra Índia separada com seus 565 príncipes. Um homem inglês, Sir Corfield, e não um marajá estava em Londres, fazendo um apelo desesperado a favor dos príncipes indianos e seus reinados. Ele odiava Nehru e o Congresso. Era Secretário Político do vice-rei, que tivera pouco tempo para falar com ele e os príncipes. Uma Índia independente iria ameaçar com balcanização em uma escala que nem mesmo Nehru havia contemplado, em Simla.
“Uma vez, parecera para o famoso Rudyard Kipling , que a Providência havia criado os marajás somente para oferecer à humanidade um espetáculo, uma visão estonteante de palácios de mármores, tigres, elefantes e jóias.” Eram príncipes excêntricos e riquíssimos que só se importavam com seu próprio bem estar, sem se preocupar com os famintos súditos.

Em maio de 1947, Mountbatten dirige-se ao número 10 da Downing Street, a fim de apresentar seu novo plano que tivera o aval de Nehru, Patel e a garantia de seu Congresso. Apesar da importância da visita com o primeiro ministro, Louis estava seguro de seu sucesso. O plano havia sido aceito também por Jinnah com o consentimento de ficarem vinculados a Commonwealth britânica, como nação livre. O mais importante agora era a presteza na realização. Attlee e os membros de seu partido aceitaram as sugestões de maneira plena. Mountbatten e Churchill tinham, através dos anos, se tornado bons amigos. Ele o chamara para discutirem o desmembramento do império, para horror de Churchill que o amava tanto. O ex-primeiro ministro tinha certeza de que os indianos jamais seriam capazes de comandar a si mesmos. Precisava ser convencido da divisão do país, pois com a maioria na Casa dos Lordes poderia atrasar os eventos, caso não concordasse. Queria saber se havia algum documento escrito e assinado sobre o fato. Sim, havia uma carta de Nehru. E sobre seu velho inimigo, Gandhi? Louis admite que ele, realmente, seja imprevisível! Era um grave perigo em potencial. Finalmente Churchill declara que se o vice-rei tivesse uma resposta formal em que todos os partidos indianos concordariam com o plano, então, ele aceitaria. O Partido Conservador estaria de acordo.
Em Nova Delhi, princípio de junho, pilhas de papéis e documentos estavam sendo queimados como piras funerárias. Isso era observado pelos burocratas britânicos, pois se tratavam de crônicas e escândalos proporcionados pelos marajás indianos que poderiam se tornar fonte de chantagem, como já havia ocorrido. Alertado sobre o ocorrido Nehru protestou, pois esses documentos, a seus olhos, eram parte importante do patrimônio indiano. Era tarde demais. As atitudes desses marajás eram uma ofensa à puritana Inglaterra. Em seguida, Mountbatten chega à Índia com todos os documentos necessários à libertação.
No palácio do vice-rei, cada personalidade tomou seu assento ao redor da mesa circular. Nehru, Patel, Acharya Kripalani, e os muçulmanos Jinnah, Liaquat Ali Khan e Rab Nishtar. Baldev Singh era o porta voz de seis milhões de pessoas, os Sikhs. Estavam, também, Lord Ismay e Sir Eric Mieville, além do vice-rei. Mountbatten decidiu, para maior segurança, que ele falaria. Após um breve resumo, referiu-se ao status de domínio, cláusula de Winston Churchill, mas isso não significaria interferência direta dos britânicos, a não ser que fosse extremamente necessário. Pediu apenas um voto de boa vontade e espírito pacífico para que não houvesse um banho de sangue. Os três partidos: Liga Muçulmana, Congresso e os Sikhs deveriam dar uma resposta até meia-noite.
Contudo, um pesadelo pairava no ar, o imprevisível Gandhi. Louis esperava neutralizá-lo nessa hora vital. Gandhi era o Partido! Poderia galvanizar as massas facilmente. Ele já havia ameaçado que poderiam queimar a Índia, mas não dariam nada ao Paquistão. Essa “velha alma” entrou no escritório do vice-rei exatamente as doze e trinta desse dia. Gandhi escreveu em um pedaço de envelope velho, que recortava como papel de apontamentos, e escreveu que era seu dia de silêncio, mas falaria mais tarde. Depois disso, partiu.
Mountbatten estava tendo problemas com Jinnah, que queria uma semana para reunir seus homens. Não. Esta foi a resposta que ouviu. O vice-rei queria apenas um consentimento de sua cabeça e nenhuma palavra, caso contrário tudo ruiria.
O encontro ocorreu na hora exata. Os dois partidos haviam concordado, faltava apenas Jinnah, que pressionado faz um mínimo gesto de concordância. Assim a nação de quarenta e cinco milhões de habitantes recebia a sentença final. Finalmente o sonho impossível do Paquistão seria realizado. Mountbatten com um maço de papéis em mãos lê: “As Consequências Administrativas da Partilha.” Cada um dos membros havia recebido o mesmo documento. Nenhum dos sete homens estava preparado para o que iriam ler. Tudo o que pertencera por séculos a essas pessoas, desde um livro na biblioteca, até grandes instituições e terras seria dividido. “Um silêncio atordoador preencheu a sala quando os sete homens, pela primeira vez, mesuraram o que estava diante deles.” Isso fora deliberadamente concebido por Mountbatten para não deixá-los capazes de se rebelarem.
Gandhi apenas lhes desejava sabedoria.
Depois das dezenove horas, em Nova Delhi nos estúdios da ALL INDIA RADIO, os principais líderes começaram a dar as novas notícias ao povo indiano. O primeiro a falar foi Louis Mountbatten, seguido pelo triste Nehru. Jinnah foi o seguinte, com um discurso incompreensível.
No outro dia, Gandhi anunciou que estava fora da liderança do Congresso, sendo assim convidado para discutir com o vice-rei. Seu estado de ânimo era péssimo, mas Mountbatten fez o que pode para acalmar esse pássaro ferido. Cada província deveria votar se queria ligar-se ao Paquistão ou Índia. Gandhi urgiu que os britânicos deveriam partir o mais rápido possível! Apesar de todo o charme e persuasão do vice-rei, Gandhi continuava se opondo à divisão. Aos setenta e oito anos, esse homem estava, pela primeira vez, incerto com o resultado de reunir as massas indianas. Ele foi assolado pela dúvida. Louis foi salvo pelo horário de orações de Gandhi, que nunca poderiam ser atrasadas. Gandhi silenciou e um dia os indianos pagariam o preço de seu silêncio com rancor.
“Mountbatten revelou à opinião mundial e aos indianos os detalhes de um dos mais importantes certificados de nascimento na história.” Era a independência total de um quinto da humanidade. Trezentos jornalistas mundiais misturados com a imprensa indiana seguiram com notável atenção suas palavras. Para o vice-rei era a apoteose de um trabalho incomparável, feito em dois meses. Ocorre que, dentre as perguntas e respostas, uma voz anônima faz uma pergunta vital. Qual seria a data para esse ato tão importante como a transferência de poder. Um número de rápidos cálculos passou por sua cabeça e finalmente chega à conclusão: 15 de agosto de 1947. Era o segundo aniversário da capitulação japonesa.
Essa decisão tão espontânea do vice-rei foi uma bomba! Em Londres a notícia foi chocante, pois o próprio Attlee não imaginaria uma data tão próxima e precipitada. Mountbatten havia cometido um erro imperdoável ao anunciar a data “sem antes consultar o mais poderoso corpo oculto da Índia, os astrólogos!” Milhões de indianos não faziam nada por mais trivial que fosse sem antes consultar previamente seu astrólogo. Essa data seria uma sexta-feira, dia não auspicioso, assim como o domingo. Era um dia tão desanimador, que “levaria a Índia para a danação eterna.” Para o famoso astrólogo Swami Madananad a data seria uma catástrofe para o país. Esse jovem homem apesar de seu treinamento de disciplina física e espiritual adquirida através e anos de prática yoga e meditação perdeu o controle sobre si mesmo e escreveu para Mountbatten adiar a data, mesmo continuando sob domínio britânico, pois a Índia nasceria no dia amaldiçoado pelas estrelas.
Restavam apenas setenta e três dias para a separação. Mountbatten e seus assessores contavam os dias em um calendário. Finalmente essa gigantesca tarefa recairia sobre os ombros de dois advogados: um Hindu, H.M.Patel e outro muçulmano, Chaudhuri Mohammed Ali. E por ironia essa tarefa foi feita na língua dos colonizadores: o INGLÊS. O Débito que herdariam era de cinco bilhões de dólares, para o povo que havia sido explorado e colonizado! A divisão mostrava-se muitíssimo complexa e cheia de dificuldades e empecilhos. Houve argumentos, barganhas e lutas. Coisas inacreditáveis como quem deveria pagar a pensão das viúvas de marinheiros perdidos no oceano era uma delas. Dicionários eram partidos ao meio! Além dos burocratas havia os extremistas com seus clamores. Contudo, a divisão mais dolorosa foi a de um milhão e duzentos mil Sikhs, Muçulmanos e Ingleses do orgulhoso Exército Indiano. “Ele havia hipnotizado o ideal vitoriano da Índia melhor que qualquer outra coisa,” Esses soldados sabiam melhor do que ninguém suportar a fome e agonia. Haviam lutado com distinção na Segunda Guerra Mundial. Agora, entretanto, deveriam escolher se ficariam com a Índia ou com o Paquistão. Jinnah não os queria em sua Armada, portanto escolheram servir a Índia.
Sir Cyrill Radcliffe, filho de um esportista rico e que seguia a lei com absoluta paixão, era uma dos mais brilhantes e talentosos barristas na Inglaterra. A esse homem recaiu a incumbência da divisão das linhas fronteiriças de Bengala e Punjab. Ele não conhecia nada do lugar e nunca havia posto um pé no subcontinente! Nehru e Jinnah, convencidos que seriam incapazes de tal missão, concordaram que Cyrill fizesse sua escolha. Essa sua ignorância sobre a Índia o fazia o candidato ideal, explicou-lhe Mountbatten.
Desta vez a missão do vice-rei era dialogar com dos 565 membros de sua Alteza Ydavindra Singhs, os marajás e nawabs da Índia. Esses príncipes possuíam exércitos privados e forças aéreas. Tinham sido representados por Sir Conrad Corfield, quando de sua ida secreta à Londres. O melhor que se poderia fazer por eles era protegê-los de si mesmos. Mountbatten queria que abandonassem seus pedidos e se juntassem até 15 de agosto à Índia.
Nehru, formalmente, pediu ao vice-rei que se tornasse o primeiro Governador Geral do país. Jinnah, orgulhoso, queria ser o primeiro Governador Geral de seu país, Paquistão. Disse: “Serei Governador Geral e o Primeiro Ministro fará o que eu disser.”
Attlee, Churchill e o Rei, urgiram Mountbatten a aceitar o cargo, mas Gandhi havia sugerido “uma doce menina, de coração forte, incorruptível e de cristalina pureza.” Contudo, Louis era fascinado por Gandhi. Assim, Gandhi pediu-lhe que aceitasse essa oferta. Isso foi “um imenso tributo pessoal para Mountbatten.” Para tanto teria de se mudar do palácio e viver em uma casa humilde e sem empregados. O palácio se tornaria um hospital. O velho homem estava “tentando transformá-lo no primeiro Socialista da Índia!” Cyrill Radcliff esperava que seu trabalho fosse feito em tempo suficiente para que ficasse bem executado. No entanto, o vice-rei explicou-lhe que era imperativo que sua decisão estivesse pronta até 15 de agosto! Essa pressa ocasionaria erros e falhas graves que arruinariam as fronteiras indianas. Ele não se convenceu e falou com Nehru e Jinnah que também concordaram com a urgência.
Punjab julho de 1947
Nunca a Índia, como nesse ano, havia sido tão beneficiada pela natureza, os campos repletos de alimentos e água. Lahore era a capital e coração de Punjab. Uma belíssima cidade “mais cosmopolita do que Delhi, mais aristocrática do que Bombay e mais velha do que Calcutta. Era a mais bonita da Índia, a Paris do Oriente. Durante recepções, jantares e bailes, toda a comunidade misturava-se sem discriminação de raça ou credo. Era uma cidade tolerante. Um sonho que se acabou em julho de 1947. Uma campanha de tumultos orquestrados havia forçado o governo de coalizão governamental, que tinha governado a província por uma década, a renunciar. A violência que se seguiu fez com que Sir Evan Jenkins tomasse a administração em suas mãos. Sir Radcliffe, ao visitar a cidade de seus sonhos encontrou calor, tempestades de pó, tumultos, sangue e queimadas! Cem mil pessoas abandonaram as ruas em rota de fuga. Cada local ao ar livre era um trançado de mercadores ambulantes. Havia quarteirões de frutas, especiarias, jóias, perfumes, sedas, sapatos bordados a ouro, cristais, pratas, caixas maravilhosas de sândalo, laqueadas, de marfim, de madre pérolas e muitos outros produtos exóticos e caros. Agora a morte investia contra a velha cidade, destruindo-a. A morte era como um relâmpago. Acabava em um segundo, antes que se pudesse dar conta do que estava ocorrendo. As pessoas se dirigiam ao apreensivo Radcliffe desesperadas por perderem tudo que haviam acumulado por anos e gerações. Ele lutava para extrair um mínimo de conselho dos juízes que o atendiam!
Na cidade de Amritsar ficava o templo sagrado dos Sikhs, O Templo Dourado. Uma população de seis milhões de religiosos adorava seu templo e seu Livro Sagrado. Os homens tinham longas barbas ao vento, compridos cabelos nunca cortados e sobre eles turbantes coloridos. Eram altos, bélicos, mas representavam apenas dois por cento da população local. Apesar desse número inferior, possuíam quarenta por cento das terras e produziam dois terços da colheita. A tragédia de Punjab era que, enquanto eles poderiam viver sob o domínio britânico, não poderiam viver um sob o domínio do outro. Contudo, agora, eles haviam perdido seu vigor marcial devido à prosperidade, segundo um boato que corria silencioso. Ocorre que eles queriam revanche. Convencido pelos políticos indianos, o flexível Mountbatten muda a data da independência do império para 14 de agosto de 1947.
O grande sonho de Gandhi era criar uma Índia moderna com seus ideais socialistas de paz e independência. Ele propunha o esquecimento de toda tecnologia e ciências modernas dos cinquenta anos passados, pois a industrialização havia concentrado o poder nas mãos de poucos, à custa de muitos. Ele pregava o retorno à simplicidade. Não pregava uma doutrina da pobreza, mas de um equilíbrio perfeito entre os seres humanos. (Gandhi e o Marxismo tinham muito pouco uso um para o outro). Vinte e cinco anos após sua morte o principal drama da Índia era a corrupção e a venalidade dos ministros do Congresso.
Gandhi e Nehru tentavam desesperadamente ajudar aquela população desordenada que Nehru teria de governar brevemente.
O Projeto de Lei da Independência da Índia era um modelo de concisão e simplicidade. Até mesmo Churchill elogiara seu adversário pela ótima escolha de Mountbatten para tal decisão. Todos os aspectos do projeto eram respondidos “Le Roi le veult” .
“O vice-rei estava pronto para começar a jogar as maçãs na cesta de Vallabhbhai Patel”. Ele urgia seus ouvintes a assinar o Ato de Acessão, o qual uniria seus estados à Índia ou ao Paquistão. Em outra conferência com os príncipes indianos, o vice-rei ponderara que estavam à beira de uma revolução e que em breve perderiam perder para sempre sua soberania! “Casem-se com a nova Índia”, implorava-lhes.
Kashimir, julho de 1947
Hari Singh era o herdeiro marajá do melhor estado, estrategicamente situado da Índia, onde Índia, China, Tibete e Paquistão estavam destinados a encontrarem-se. A lógica dizia que a Caxemira deveria unir-se ao Paquistão. Seu povo era Muçulmano. Jinnah havia garantido que Hari Singh seria bem vindo e teria um lugar de honra em seu novo domínio. “Não” foi sua resposta e “Não” também à Índia. Queria um estado independente! Caxemira era um estado muito grande e sub-habitado e isso daria ensejo para perder o poder, o trono e a vida. Mountbatten trabalhou herculeamente para conseguir a adesão de todos os estados, pois alguns não aceitavam a nova coligação. O vice-rei deseja entregar a Patel um cesto cheio de maçãs.
Em cinco de agosto diante do vice-rei, Jinnah e Liaquat Ali Kahn, Sr. Savage tinha uma notícia aterradora e tão secreta para eles, que fora obrigado a memorizá-la. Um grupo de Sikhs extremistas juntara-se ao grupo mais fanático da Índia, o R.S.S.S. Tinham decido transbordar em sangue a Índia com atos terroristas. Em 14 de agosto de 1947, esses homens estariam estacionados ao longo da rota que levaria Jinnah, em uma procissão triunfante, pelas ruas de Karachi, até que chegasse a sua residência oficial. Assim a Índia entraria em uma guerra civil sem precedentes na história. Mountbatten pondera e resolve pedir auxilio a Sir Evan Jenkins e aos dois homens designados a governar Índia e Paquistão. Naquela noite Sr. Savage retornou a Londres.
Cinco dias mais tarde, durante a noite de 11 para 12 de agosto, os Sikhs de Tara Singh executaram a primeira parte de seu plano diabólico contra Punjab.
Em Dehli, isolado em seu bangalô Sir Cyril Radcliffe, o barrista que não conhecia a Índia, começou a traçar no mapa as linhas fronteiriças que dividiriam os oitenta e oito milhões de Indianos. Era um trabalho abstrato, pois jamais veria o efeito do seu traçado nas vidas dessas pessoas. Era obrigado, pelo açodamento, a demarcar trinta milhas de fronteiras por dia, sem ter tido a oportunidade de visitá-las. Essa era uma ideia aterradora! Ele sabia que estaria dividindo ou juntando pessoas de diferentes religiões e tradições. Sir Radcliffe sabia que haveria, sem sombra de dúvida, um banho de sangue e matança quando seu trabalho fosse publicado! Sozinho não via, virtualmente, qualquer pessoa. Estava fazendo o melhor trabalho possível, mas tinha certeza de que não fazia nenhuma diferença, pois no final todos se matariam.
Em Punjab, “hordas de Sikhs, como bando de Apaches, caiam sobre as vilas ou vizinhanças muçulmanas.” Homens e mulheres muçulmanos foram massacrados e mutilados. Para manter a ordem naquele caos total, depois de 15 de agosto de 1947, o vice-rei decidiu manter uma força especial de cinquenta e cinco mil homens, que eram dirigidos pelo Major General G. R., um inglês. Essa unidade tão significante foi varrida com a mais completa facilidade pelos revoltosos. Nehru, Jinnah, Sir Evan Jenkins e o próprio vice-rei previam a magnitude da calamidade, entretanto as críticas caíram sobre os ombros do último vice-rei da Índia. Cada um desses homens genuinamente acreditava que a divisão esfriaria a violência. Ninguém poderia prever as dimensões gigantescas desse desastre! Ironicamente, o único líder indiano capaz de configurar toda essa desmedida violência era o pacifista e contrário a esse plano mutilador do país, Gandhi.
Mountbatten preocupava-se com a instável Calcutá e precisava desesperadamente da ajuda de Gandhi! Ele havia comentado com o líder, em julho, sobre essa possibilidade. Talvez através de sua forte personalidade e seu ideal de não violência pudesse obter o que as tropas certamente não poderiam. Porém ele não tinha intenção de ir a Calcutá, apesar dos apelos do vice-rei. Um pedido inusitado do corrupto e brutal muçulmano de 47 anos, Shaheed Suhrawardy, obtém algum resultado. Gandhi observa sinceridade nessa solicitação e decide aceitar, mas com a condição de que ficassem juntos e sozinhos, com os corações abertos, vivendo em um casebre de uma favela em Calcutá. “Seria um grande risco”, escreve para Delhi, e pede que observem tudo atentamente.
Os líderes do Congresso haviam resolvido que haveria muita pompa no dia da Independência, assim como Jinnah e seus partidários. Para os ingleses da Índia era um momento para lamentos. Perderiam suas mansões, criadagem, caçadas, clubes de golfe e uma vida fácil e rica para voltarem à Inglaterra e viverem em um simples bangalô! “Os serviços de prata, as peles de tigres e as histórias que vinham com eles, as solenes mobílias escuras vindas de Londres há quarenta, estavam empacotados para a viagem de volta.” Mountbatten havia dado ordens expressas para que absolutamente tudo fosse deixado em solo indiano e paquistanês para o uso que eles desejassem. Apesar disso nem todo o tesouro foi deixado. Um exemplo singular foi uma arca abarrotada de preciosos livros com posições sensuais e eróticas indianas. Foram durante o curso de cinquenta anos, julgados muito escabrosos para ficarem no solo indiano. Ficariam sob custódia inglesa. Contudo eles seguiram viagem para a Inglaterra.
Como sempre em silêncio Jinnah caminhava para o túmulo de sua mulher, que não era muçulmana. No entanto ambos se apaixonaram e a belíssima jovem mudou-se da casa dos pais, para casar-se com ele. O casamento durou apenas dez anos, pela exuberância da esposa, que morreu em plena juventude, de uma overdose de morfina contra as dores de colite. A partir de então, consagrou sua vida para o despertar dos Muçulmanos na Índia.
Ali Jinnah estava voando para Karachi, usando roupas típicas. Nenhum traço de emoção aparecia em seu rosto impenetrável. Apesar de muito doente saiu do avião sem nenhuma ajuda. A multidão de pessoas, vistas pela janela do avião, continuavam a saudá-lo. Ao chegar a seu destino revela que nunca havia esperado ver o Paquistão em sua vida.
Nesse momento, a preocupação de Mountbatten era a nova relação que surgiria entre a Britânia e essas duas novas nações. Os habitantes de Punjab e Bengala teriam de continuar ignorantes sobre o domínio ao qual pertenceriam dentro em breve. Isso era crucial para evitar o desmantelamento de tanto trabalho. Somente após 15 de agosto saberiam seus destinos.
De diferentes formas eram celebradas as festividades da independência. Civis e soldados de variadas religiões e culturas comemoravam a data prometendo fraternidade e breve reencontro. Ele ocorreria, mas nos campos de batalha de Kashmir.

Calcutá, 13 de agosto de 1947
Trinta e seis horas antes da data da independência, Gandhi sai à procura de um milagre. Encaminhava-se para Calcutá, a cidade mais violenta do mundo. Em suas favelas viviam três milhões de seres humanos em estado crônico de desnutrição e ódio. “Uma vez mais o artesão da independência da Índia preparava-se para oferecer sua vida aos seus conterrâneos”... Desta vez para libertá-los do veneno de seus corações. No dia 13 de agosto ele chega a essas favelas violentíssimas e putrefatas, querendo, de algum modo, prevenir um terrível massacre! Gandhi e seus seguidores instalam-se em uma deteriorada mansão, adaptada para recebê-los e as pessoas com quem iria dialogar já se encontravam lá. Tratava-se de Hindus maltrapilhos que gritavam seu nome, mas não mais o saudando, agora o insultavam. Ele observa que estava lá para defender Hindus e Muçulmanos, igualmente. Havia prometido aos segundos que jejuaria até a morte se cometessem um ato sequer contra os Hindus. E a estes oferecia seu próprio corpo. Morreria para salvá-los. A multidão, a princípio, congelou, mas em seguida uma chuva de pedras atingiria a casa do velho Gandhi e a turba voltara-se contra ele.
Karachi, 13 de agosto de 1947
Mountbatten e seu staff falharam na tentativa de evitar a infiltração dos fanáticos Hindus da R.S.S.S. A única saída seria cancelar o séquito de Ali Jinnah. Ele fora bem sucedido, onde o infeliz líder, nas ruínas da Mansão Hydari em Calcutá, tinha falhado. Apesar da força de Gandhi, Jinnah tinha dividido a Índia! A procissão que levaria Jinnah e Mountbatten, em carro aberto, até seu palácio seria a maior e mais temerária aventura da vida desse vencedor e intrépido vice-rei. A possibilidade de assassinato era mais do que certa, todavia conseguiram chegar a salvo, apesar das tensões indescritíveis em vários momentos.
Calcutá, 14 de agosto de 1947
Os encontros de oração eram os preferidos desse pequeno homem, em qualquer parte do mundo que estivesse. O que reivindicava, como a não violência e cuidados com a saúde física e espiritual, consistiam as Palavras Sagradas de Gandhi. Em 14 de agosto de 1947, no primeiro encontro com aquela população descontente compareceram dez mil pessoas, número bastante razoável. Disse-lhes: “A partir de amanhã, estaremos livres do jugo Britânico. Mas a partir da meia noite de hoje”, falou com tristeza, “A Índia também será dividida. Amanhã será um dia de júbilo; mas também será um dia de tristeza.” “Se Calcutá puder retornar à razão e fraternidade, toda Índia poderá ser salva.” Acrescentou que não celebraria a chegada dessa liberdade, da forma que fora concluída. Pediu a todos que orassem e jejuassem para a salvação da pátria.
O jornal The Times of London escreveu que “As cerimônias foram marcadas por uma surpreendente falta de entusiasmo popular e uma apatia geral no ar”.
Nova Deli, 14 de agosto de 1947
Dois homens santos, em um carro, pertenciam a mais alta casta da Índia. Eram Brâmanes de cabeça raspada, peito nu, que viviam de esmolas, os Sannyasin, o mais alto posto abençoado que se poderia obter em dez milhões de reencarnações. Eles carregavam uma bandeja de prata e sobre ela a Veste de Deus, que deveria ser utilizada por Nehru, o racional. Esse rito era uma manifestação tediosa e significava o que ele mais deplorava em sua pátria. Mesmo assim, se submeteu a ela com humildade.
Em 15 de agosto de 1947, ao nascer do sol, a bandeira da Índia independente subiu ao topo do mastro no palácio de Nehru. A bandeira da Inglaterra havia descido ao por do sol do dia 14, para nunca mais ser hasteada.
Em seu escritório, o telefone toca e Nehru é avisado que a cidade de Lahore encontrava-se em chamas! “Como vou falar hoje à noite? Como vou fingir que há alegria em meu coração pela independência da Índia quando sei que Lahore, nossa linda Lahore, está ardendo em chamas?”
Essa visão assombrava Nehru. O jovem capitão Atkins dirigia seu jipe em direção a Lahore e atrás dele vinham 200 homens de sua companhia avançada, 200 caminhões e 50 jipes trazendo todo seu batalhão para Lahore, em um total de 55.000 homens. Infelizmente, apenas 10.000 soldados da Armada Indiana estavam presentes na véspera de sua independência.
Nehru permanecia na Assembléia lotada. Nos bancos à sua frente, sáris e khadi, jaquetas de jantar e roupas principescas eram usadas pelos representantes da nação que nasceria esta noite. Ela possuía 275 milhões de Hindus, 50 milhões de Muçulmanos, 7 milhões de cristãos, 6 milhões de Sikhs, 100.000 Parsis e 24.000 Judeus. A Nação teria de abrigar 15 línguas oficiais e 845 dialetos. Abrigaria também uma população de leprosos do tamanho da Suíça, tantos padres quanto à população belga, pedintes suficientes para habitar a Holanda, 15 milhões de homens sagrados, 20 milhões de aborígenes, que ainda caçavam cabeças humanas e um sem fim de doentes, nômades, mágicos, vendedores de ervas e jogadores compulsivos. Dez milhões de indianos morriam todo ano de má nutrição e 38 mil nasciam todos os dias, mas a metade morria antes dos cinco anos. “O Panteão de Hindus da Índia continha três milhões de divindades...” Ao soar a meia noite, para o mundo constituía a retirada para o transpor de uma era. Aquela era havia começado em 1492, quando Cristovão Colombo partiu a procura do caminho marítimo para as Índias e descobriu a América.
Em quase todos os estados e suas capitais as celebrações ocorriam com júbilo e de diferentes formas. Até mesmo os Intocáveis foram lembrados; lamparinas a óleo e velas foram oferecidas para que saíssem do escuro de seus barracos. Na velha Delhi alguns fanáticos muçulmanos diziam que haviam obtido o Paquistão por direito; entretanto obteriam o Hindustão pela força. No mesmo instante, Hindus e Sikhs refugiados de Punjab acotovelavam-se em campos, ao redor de Delhi, ameaçados de tornar a capital dos Muçulmanos vizinhos em uma fogueira para celebrar a independência. “Agora nossos pesadelos realmente começaram” disse V. P. Menon.
Lahore estava totalmente devastada. Quase cem mil Hindus e Sikhs foram encurralados dentro dos muros da cidade. Calcutá, entretanto, encontrava-se sob uma inacreditável metamorfose. Sikhs abriam as portas das mesquitas para os partidários de Kali, e eles convidavam Muçulmanos para seus templos para adorarem a repulsiva imagem da Deusa da Destruição.
O palácio de Mountbatten passava por uma grande transformação. Louis não queria que sobrasse um só vestígio do antigo império. O presidente da nova Assembléia convida-o para ser o primeiro Governador Geral da Índia. Louis aceita a honraria.
Na velha Mansão onde Gandhi encontrava-se, voluntários Hindus e Muçulmanos, adeptos da não violência, faziam vigília. No grande dormitório comunitário, exatamente à meia noite, Gandhi dormia profundamente.
Benares, 15 de agosto de 1947
No primeiro frio da manhã, multidões encaminhavam-se para o rio Ganges, o Supremo Doador da Vida. Realizariam o ritual de imersão em suas águas sagradas na velha cidade de Benares. Esse grande rio desaguava nas águas cinza da Baia de Bengala. Essa era uma das áreas mais tórridas e super populosas do globo. Esses ritos simbólicos uniam os Hindus ao seu rio. Desde o despertar da história, desde o tempo da velha Babilônia, Nineveh e Tyre, os Hindus vinham banhar-se nos Ganges e beber sua água, em honra a algum deus. Humildemente agradeciam aos deuses o nascimento da moderna Índia! Por séculos, morrer em Benares era a maior benção que um Hindu poderia aspirar.
Na Mansão Hydari, não havia alegria no coração do velho homem. “A vitória pela qual Gandhi havia lutado tanto tinha gosto de cinzas” e a possibilidade da tragédia que viria. Como fazia sempre em momentos de crise, leu a canção celestial de Bhagavad Gita.
Em Nova Delhi, Mountbatten dirigia-se ao trono, onde receberia a incumbência única de descolonização. Sob um pálio de veludo, estavam Nehru, Patel e outros membros do Congresso. “Mountbatten levantou sua mão direita e solenemente jurou tornar-se um humilde e fiel servidor de uma Índia independente.” “Era uma Índia como nenhum outro inglês em três séculos de história havia visto.”
Até mesmo a Índia mística dos faquires e contadores de estórias juntou-se à grande festa. Jinnah assumia seus plenos poderes em uma cerimônia oficial. Iria governar seu país como um ditador.
Punjab, 15 de agosto de 1947
O nascimento da Índia fora um dia de terror em Punjab. Em Amritsar, enquanto as autoridades procediam a seus rituais, hordas de Sikhs invadiam a cidade, matando os homens, mutilando-os e estuprando as mulheres repetidas vezes, que em seguida tinham as gargantas cortadas. A estação de trem de Amritsar tornou-se um campo de refugiados, mas os Sikhs esquartejaram e jogaram os pedaços de corpos por toda paragem.
Em Calcutá uma magia aconteceu entre Gandhi, Hindus e Muçulmanos. Todos celebravam juntos em harmonia. Outra imensa comitiva aproxima-se dele, desta vez eram jovens meninas, que vinham buscar sua benção. Espontaneamente, Gandhi faz um discurso endereçado aos novos dirigentes da Índia e não à sua massa. “Cuidado com o poder... O poder corrompe... Lembrem-se, vocês estão na direção do país para servir os pobres das vilas da Índia.” Nessa tarde, trinta mil pessoas encaminharam-se para o encontro com Gandhi.
Em Poona, no mesmo dia, a bandeira hasteada não era a da Índia independente, mas sim o triângulo laranja, que levemente modificado, havia aterrorizado a Europa por dez anos, a suástica. Era um símbolo ariano, trazido nas primeiras levas de conquistadores arianos. Os homens que se encontravam no sítio eram da R.S.S.S., esse movimento quase fascista. Acusaram Gandhi de ser responsável pela divisão da Índia! Esse foi um insulto jamais perdoado.
A cerimônia oficial e subida da bandeira deu-se às cinco horas da tarde, em local aberto, perto dos portões de Nova Delhi. Uma densa torrente de seres humanos inundara o ambiente, levando todos os preparativos cuidadosamente feitos, de roldão com eles. Mountbatten percebeu que seria quase impossível concluir a cerimônia, pois nem ele conseguiria chegar à plataforma. A multidão gritava “Longa vida a Mountbatten!”
Balmoral, Escócia, 15 de agosto de 1947
No coração das Highlands escocesas, o Rei George VI fora informado que a transferência de poder para as mãos indianas havia sido concluída. O último Secretário do Estado da Índia anunciou também que não ele não era mais George VI, Rei Imperador. Mas apenas Rei George VI.
Londres, 16 de agosto de 1947
O primeiro ministro Clement Attlee ficara muito satisfeito com o resultado do trabalho de libertação, contudo Mountbatten envia seu Secretário, George Abell, para Londres a fim de que os políticos ingleses se detivessem em suas manifestações muito favoráveis. Attlee reconhece que haveria um preço a ser pago que haveria “um terrível derramamento de sangue na Índia que tinham deixado.”
Quando os dois governantes responsáveis pelos novos governos indianos estudaram os documentos da divisão que haviam solicitado, seus rostos se contorceram e explodiram em graves protestos, apesar de Cyril Radcliffe ter seguido rigorosamente as instruções recebidas por eles. Na prática fora um desastre! Como por exemplo: de um lado, um país ficara com todos os campos de juta sem um único moinho e, no outro, com todos os moinhos sem nenhuma juta. Sem intenção, “talvez inadvertidamente, a divisão do inglês, oferecia à Índia a esperança de demandar a Caxemira.” Esses são dois simples exemplos dos gravíssimos erros que decorreriam em catástrofe. “Radcliffe sabia melhor do que ninguém o pesar e a consternação que as linhas iriam causar.”
Punjab, agosto e setembro de 1947
Por seis semanas um cataclismo varreu o nordeste da Índia. Comunidades que por séculos haviam vivido lado a lado começaram a matar-se. Foi “uma convulsão e o colapso da sociedade”. A linha divisória de Radcliffe deixara sociedades Sikhs, Hindus e Muçulmanas posicionadas em lados desiguais. As massas muçulmanas do Paquistão achavam que todos os bens, como lojas, bares, fábricas etc., que haviam ficado do seu lado, pertenciam a eles. Isso fez com que caíssem sobre os outros. A Paris do Oriente, Lahore, estava em chamas e Atkins ficara horrorizado com o que vira, pois “um inteiro canal de irrigação estava repleto com centenas de corpos Sikhs e Hindus.” Sikhs perseguiam muçulmanos com se fossem participar da caça à raposa! O grito de guerra era quero matar mais. Um oficial inglês comentou: “Na Índia hoje o sangue flui mais frequentemente do que flui a água da chuva...” Esses atrozes acontecimentos deixaram marcas indeléveis na psique desses milhões de pessoas.
Calcutá, Agosto de 1947
Cem mil pessoas, misturados indiscriminadamente, formavam uma massa de Hindus e Muçulmanos que esperavam por Gandhi. Ao vê-los pensou que era bom demais para ser verdade! Entretanto, havia alguns pontos na cidade que não caminhavam bem. Esse velho esquálido e desarmado fez o que 55.000 soldados fortemente armados foram incapazes de realizar em Punjab. A situação no Paquistão era bem pior. Jinnah não tinha qualquer condição de governar por causa dos tumultos generalizados. A economia entrara em colapso. O sistema bancário estava paralisado e a distribuição do equipamento armado da velha Índia também. Munições, trens e outros aparelhamentos ou não chegavam ou eram em número pífio. As novas nações estavam sendo engolidas pela maior migração da história da humanidade! O êxodo foi sem precedentes, pois nem mesmo durante a formação do estado de Israel ou as pessoas que fugiram da Europa Oriental depois da guerra igualava-se a isso. Até mesmo os enfermos foram acometidos por essa onda, pois os médicos Hindus ordenaram que eles saíssem de seus hospitais. Vinte mil pessoas deixaram suas casas, em uma hora, marchando em direção à estação de trem ao bater de um tambor! “Essa terrível migração alteraria para sempre a face e o caráter de uma das faixas de terra historicamente mais ricas do globo.”
Calcutá, agosto de 1947
Meio milhão de Hindus e Muçulmanos, lado a lado fraternalmente, cobriam as superfícies verdes dos campos de criket e pólo da Índia Britânica. Estavam lá, esperando a oração da noite que Gandhi faria. Quando ele apareceu na plataforma, uma explosão de entusiasmo veio da multidão. Precisamente às 19 horas, Gandhi juntou suas mãos e as levantou no tradicional sinal de agradecimento para a aglomeração. Sucede que para os Punjabis o seu primeiro instinto foi refugiar-se na organizada estação de trem inglesa. “Agora esses trens se tornariam para centenas de milhares de indianos a melhor esperança de fugir dos pesadelos que os cercavam... Essa multidão se atiraria nas portas e janelas dos carros.” Outros se apinhavam no teto dos trens, formando uma densa cobertura de refugiados! Muçulmanos, gritando Deus é Grande, com armas e paus mataram e esmagaram cada Hindu que fosse visto nos trens. Nenhum trem chegou a seu destino sem seu enorme complemento de mortos e feridos! Os Sikhs distinguiam-se pela sua organização e selvageria em seus ataques. Cada um deles empunhava um sabre curvo esperando silenciosamente o próximo trem. Nenhum desses comboios estava imune aos ataques. Esses trens da morte fizeram parte das histórias e lendas de Punjab por muitos anos.
Calcutá, agosto de 1947
Com o correr dos dias, as pessoas que compareciam às orações de Gandhi aumentavam, tornando Calcutá um Oasis de paz e fraternidade. Com humildade, Gandhi dizia que era a Deus que deveriam agradecer, pois não passavam de brinquedos em suas mãos, dançando como ele o desejasse. Mountbatten rende suas homenagens a esse homem que equivalia a um exército completo.
Punjab, setembro de 1947
Nehru e Liaquat, ao invés de júbilo, mostravam um silêncio amargurado pela situação atroz em que viviam, tentando restaurar ordem no caos. Finalmente Nehru fala que tinham sido irmãos há tanto tempo e não compreendia como isso pudera ocorrer. “Nosso povo enlouqueceu” respondeu Liaquat. A crueldade que seu povo repentinamente havia demonstrado fora um choque para Nehru. Por outro lado, a paz de alguns dias em Calcutá terminaria com o ataque de jovens hindus fanáticos. Na maioria dos casos eram fanáticos do R.S.S.S. Gandhi, imediatamente, correu para esse sítio. O espetáculo o repugnou. Para restaurar a sanidade de Calcutá esse grande homem iria se submeter, com setenta e sete anos e alquebrado, a um jejum até a morte. Nas mãos de Gandhi, o jejum que era um ato comum na Índia, transformou-se na mais potente arma já usada naquela ocasião. Em um país de pessoas iletradas e sem rádio essa “crucificação lenta” representava muito. Para que um jejum político fosse efetivo, deveria ser acompanhado pela imprensa. O jejum continha regras. O de Gandhi era quebrado por um pouco de água com bicabornato de soda. “Ele estava jejuando não contra os Britânicos, mas contra seu próprio povo e o delírio irracional que os tinha acometido. Seus discípulos tentaram dissuadi-lo devido à sua idade e saúde, mas nada o demoveria de sua meta. Contudo, sua degradação física foi muito rápida, agravada pelo seu estado precário de espírito. Seus seguidores procuraram os líderes extremistas hindus, pois se ele morresse haveria o massacre de um enorme número de Hindus em Noakhali. Os estudantes universitários lançaram-se em um movimento para restaurar a paz na cidade. No terceiro dia, sua voz não passava de um murmúrio e seu coração havia enfraquecido expressivamente. Angústia e remorso apossaram-se de Calcutá e os líderes Muçulmanos e Hindus resolveram pedir perdão a Gandhi, implorando-lhe para que parasse de jejuar. Gandhi, emocionado, aceita perdoá-los, mas pede que nunca mais se voltassem uns contra os outros. Suas armas são depositadas no chão, como sinal de boa vontade. Assim, Gandhi quebra o jejum ingerindo alguns goles de suco de laranja, terminado seu martírio. Era dia 3 de setembro de 1947. “O Milagre de Calcutá” havia se realizado. Contudo outros locais ainda estavam em convulsão, mas esta havia sido a última no solo dessa cidade, outrora tão violenta.
Nova Delhi, setembro de 1947
Em 1947, Delhi ainda era, em muitos aspectos, uma cidade Muçulmana. Havia milhares deles procurando abrigo e salvação, pois fanáticos da R.S.S.S. lançaram-se contra a população em uma onda de terror, na manhã de 3 de setembro. O próprio Nerhu foi visto espancado rebeldes para manter a paz. No Mercado Verde milhares de barracas de frutas e vegetais estavam incendiadas. Um bando seqüestrou uma mulher muçulmana, ensopou-a de gasolina e ateou fogo, na frente da residência do primeiro ministro, como sinal de protesto! Esses grupos sabotadores ameaçavam toda Índia e a conclusão dos políticos foi unanime: “não havia uma administração efetiva em Delhi. A capital e o país estavam à beira de um colapso.”
Simla, setembro de 1947
Louis, destituído de autoridade efetiva, viaja para Simla, que se achava intocada e calma. Contudo, recebe um telefonema de Menon, relatando a péssima situação de Delhi e a necessidade premente de sua presença. Louis recusa-se, mas Menon avisa-lhe que se mudasse de idéia mais tarde, não haveria nenhum sentido nessa atitude. Mountbatten volta e apenas três pessoas estavam presentes no encontro secreto que se seguiu: Nehru, Patel e Louis.
Os líderes revelaram a Louis que a situação em Punjab estava fora de controle. Eles não sabiam o que fazer, pois haviam passado anos de suas vidas em prisões inglesas e a arte que dominavam era da agitação e não da administração. Então Nehru fez um pedido inacreditável. Solicitou a Mountbatten para que ele governasse o país, pois era um líder nato, um administrador profissional e de alto nível. Esse inglês, porém, nega peremptoriamente. Isso enfraqueceria os dois homens indianos. Implorando ao ex-vice-rei que aceitasse consegue demovê-lo de sua negativa, porquanto Louis gostava de um desafio e seu amor pelo país era grande, assim como seu senso de responsabilidade. Elege um Comitê de Emergência, com pessoas chaves que deveriam obedecê-lo cegamente: um diretor de Aviação Civil, um Diretor de Estradas de Ferro e ainda Serviços Médicos Indianos. Depois de décadas de luta pela liberdade, a Índia encontrava-se, ironicamente, novamente nas mãos de um inglês.
Nova Delhi, setembro de 1947
O palácio, em pouquíssimo tempo, parecia um quartel general em tempos de guerra. Louis tinha os melhores mapas de Punjab e solicitou o reconhecimento aéreo sobre metade da província. Instalou uma rede de rádio ligando a Casa do Governo às áreas chaves em Punjab. Os dirigentes indianos conheceriam a face pragmática e austera de Mountbatten. Toda vez que um trem fosse assaltado, os guardas responsáveis deveriam separar os feridos dos mortos e o resto seria fuzilado imediatamente, por uma corte marcial. Outras medidas duras foram tomadas para restaurar a ordem. Levaria semanas para que esses esforços tivessem impacto sobre a catástrofe que varria o nordeste da Índia. Uma onda de miséria humana sem precedentes cobriu Punjab. Foi a maior dimensão de refugiados que a história da humanidade produziu! Os novos líderes urgiam a população horrorizada que permanecesse em seus lugares de origem. Um piloto relata que a multidão se arrastava como imensos rebanhos de gado! Tinham que caminhar não poucos quilômetros, mas centenas, sem nada para nutri-los além de poucos goles de água. Búfalos, camelos, cavalos, pôneis, carneiros misturavam-se a essa miséria. A jornada de quilômetros era uma trilha sem volta. Algumas estradas transformaram-se em verdadeiros cemitérios abertos e, além disso, parturientes haviam de carregar seus filhos recém-nascidos a pé. Como sempre, os piores ataques eram dos Sikhs.
Peshawar, setembro de 1947
Mahatma Gandhi, apesar de seu precário estado físico, viajou para Delhi, em 9 de setembro de 1947, para nunca mais partir.
Nova Delhi, setembro de 1947
Ganhdi, o mais modesto e honrado homem do mundo, por sua condição deplorável, aceitou ficar em uma residência confortável de G. D. Birla, que era um riquíssimo industrial, o qual financiava o Partido do Congresso, após tornar-se um fiel seguidor de Gandhi. Os Muçulmanos de Delhi queriam fugir para o Paquistão. A situação era tão terrível que pessoas defecavam e vomitavam na mesma poça de água na qual as mulheres lavavam seus potes de cozinhar. A burocracia da cidade tornou-se inoperante pela catástrofe. Inevitavelmente a cólera surge! Apesar de tudo, os esforços do Comitê de Louis, Patel e Nehru começaram a ser sentidos. Esses dias contribuíram para que a amizade entre Nehru e Louis se aprofundasse. Para Gandhi as dimensões da violência em Delhi eram um choque e uma surpresa. Com o Milagre de Calcutá, Gandhi passa a ser o novo ídolo de Muçulmanos, tomando o lugar de Jinnah. Gandhi nunca foi tão obstinado com suas convicções, como nos últimos tempos de sua vida. Ele visitava os campos de refugiados todos os dias, tentando fazê-los se libertarem da vingança desejada. “Ofereçam-se com não violentos, desejosos de se sacrificarem” falava. “Morram com o nome de Deus em seus lábios se necessário, mas não percam seus corações.” Certa vez, orando em um desses campos, um fato dramático ocorre. Ao pregar o amor e a paz, alguém na multidão grita que sua família havia sido assassinada por isso e um coro seguiu-se a essa voz. Gritavam: “Morte ao Gandhi” e pela primeira vez em sua vida não pode terminar uma oração pública!
Gandhi celebrou seu 78° aniversário e milhares de mensagens de todo mundo foram enviadas para sua atual casa. Cada visitante que chegava para cumprimentá-lo ficava assombrado com seu estado lastimável e a melancolia que havia se instalado em seu forte espírito. Queria que Deus o levasse, para não ter de presenciar o absurdo que sua pátria querida havia se transformado!
Punjab, Outubro de 1947
Houve, como já esperado, um estouro de selvageria. Mulheres e meninas eram, sem exceção, violentadas. Eram também leiloadas como gado ou mercadorias. Nos campos de refugiados ou nas novas capitais, o povo esperava por um milagre. Os pobres e ricos sofriam igualmente. “O cheiro de morte, decadência e doença parecia pairar sobre cada pessoa.” Edwina Mountbatten teve um papel crucial trabalhando para o bem-estar dos pobres e doentes indianos. Dormia menos de cinco horas e às seis da manhã já se encontrava em seu escritório para deliberar as ordens do dia. “Gradualmente, uma aparência de ordem começa a emergir do caos...” O Comitê de Emergência começa a ter seus primeiros resultados. Finalmente chegara as chuvas das Monções, tão esperadas pelos indianos castigados pelo forte sol e calor. Mas vieram tão violentas e descontroladas que mais parecia a ira dos Deuses caindo sobre irmãos que haviam lutado uns contra os outros! Os transbordamentos dos cinco rios pareciam ser o ato final de uma destruição já avançada. A água varreu tudo e as pontes submergiram. Jamais saberemos quantos pereceram nessas horríveis semanas em Punjab. Clement Attlee perguntava a Lord Ismay, na Inglaterra, se não haviam apressado as coisas demais, mas uma coisa era certa: os próprios líderes indianos tinham forçado essa urgência. Gandhi também havia sugerido que Mountbatten saísse o mais rápido possível. “A violência que o acordo de divisão produziu em Punjab era muito pior do que qualquer coisa que Mountbatten ou seus experts conselheiros haviam imaginado... Eles pagaram o preço da liberdade de um quinto da humanidade e esse preço deixaria seu cunho amargo por anos que ainda viriam.” Era a sua pátria.
Srinagar, Caxemira, outubro de 1947
Uma horda de chacais estava encaminhando-se para Srinagar. Centenas de homens da tribo Pathan queriam por um fim no sonho de Hari Singh de ser independente. Para Jinnah parecia impossível que a Caxemira com mais de três - quartos de muçulmanos não se tornaria parte do Paquistão.
Fronteira do Paquistão e Caxemira, 22 a 24 de outubro 1947
A rota para Srinagar estava aberta para os invasores. Ao raiar do dia eles atacaram. Sairab Khyat Khan e sua guarda dominariam o palácio. Mas quando buscou pela guarda ela havia desaparecido. Não havia mais ninguém! A cidade não iria pertencer aos Pathans naquela noite.
Nova Delhi, 24 de outubro de 1947
O Major General Douglas Gracey, soube do acontecido na Caxemira e informou o comandante em chefe da Armada Indiana, que avisou dois ingleses: Louis Mountbatten e o Marechal de Campo Auchinleck. Louis ficou atônito com a notícia e decidiu que se a Caxemira queria a independência, ela seria realizada por Hindus e não Britânicos. V. P. Menon foi ordenado para Srinagar a fim de apresentar os termos do Gabinete para o Marajá, enquanto os oficiais determinavam a situação militar do local.
Srinagar, 26 de outubro de 1947
Antes da meia-noite do dia 25, outro refugiado juntava-se a esse grande êxodo. Tratava-se de Hari Singh, o Marajá da Caxemira. Sua guarda o protegia durante a viagem. O exílio seria no palácio de inverno em Jammu, onde recebera o Príncipe de Gales. Menon volta para Delhi a fim de informar que o Marajá estava disposto a aceitar qualquer termo em troca de ajuda. Finalmente estava pronto para introduzir a Caxemira à Índia, mas os Pathans estavam próximos do aeroporto do local que poderia ser interditado. Menon chega tarde da noite e diz: “Aqui está, temos a Caxemira. O bastardo assinou o Ato de Adesão...” O estado continuaria dividido: o Vale da Caxemira em mãos hindus e os territórios do nordeste ao redor de Gilgit nas mãos dos Paquistaneses. Assim permaneceria em disputa por mais vinte e cinco anos.
Poona, 1° de novembro de 1947
Os fanáticos hindus de Poona tinham um novo herói, Savarkar, continuação da linha de Shivaji. Fisicamente não estava presente na reunião, mas sim sua imagem. Havia sido consumidor de ópio por anos e era homossexual, entretanto era um brilhante orador, era o “Churchill de Maharashtra.” Como Nehru, Jinnah e Gandhi completou seus estudos nas Cortes de Londres. Havia sido preso, em 1910, pelo assassinato de um burocrata inglês. Ele detestava o Congresso com seus pedidos para a unidade Hindu-Muçulmana e a não violência de Gandhi. Vinha da alta casta de brâmanes, mas seu real interesse era a R.S.S.S. Os dois jovens extremistas que comandavam a reunião acionaram os botões para a impressão do jornal revolucionário Hindu Rashtra. Ambos também eram brâmanes. Eram eles: Nathuran Godse e Narayan Apte, que fundaram, a pedido de Savarkar em 1944, o jornal mais incisivo de Poona. Esses jovens eram totalmente diferentes apesar de pertencerem à mesma casta. Godse era ascético, devoto e indiferente à comida. Vivia numa cela de monge e levantava-se às 5.30 da manhã sendo fascinado por astrologia. Godse fora mau aluno, pois sua paixão era política e havia se tornado um seguidor de Gandhi. Desiludido segue Veer Savarkar e sua doutrina Hindutva, tornando-se um astuto pensador político. Apte era gregário e introduziu a seus alunos os segredos eróticos do kama sutra. Godse teve apenas um encontro sexual em sua vida e foi com seu mentor Savarkar. A pequena cidade de Panipat havia se transformado em um local de miseráveis refugiados ainda chegando à Índia provindos do Paquistão. Um vagão chega a toda velocidade na estação. Dele saiu a única força de ajuda dos Muçulmanos de Panipat, Mahatma Gandhi! Quando surgiu, um clamor veio da multidão que gritava: “Sua esposa foi estuprada? Seus filhos foram cortados aos pedaços?” “Sim”, ele responde, “porque suas mulheres são minhas mulheres e seus filhos são meus filhos.” Sua única arma era suas palavras! Implorou-lhes que não desumanizassem seus corações. Após duas horas de pregações, saiu em triunfo do palanque. Essa ação salvou muitas vidas, mas não erradicou o medo dos Muçulmanos de Panipat. Apte, o administrador do jornal Hindu Rashtra, em seu disfarce preferido de túnica laranja e ar espiritualizado, executava suas atividades de traficante de armas. Badge, preso diversas vezes, tinha uma loja de armas, sob a fachada de livraria e Apte era seu melhor cliente, tramando algo muito grande.
Nova Delhi, dezembro de 1947
Para seu secretário que o servia há anos, Gandhi “parecia o homem mais triste do mundo.” Uma barreira psicológica estava sendo erguida entre ele e seus colegas que já se encontravam no poder. Advertia constantemente Nehru e Patel sobre a corrupção crescente na Índia com seus banquetes requintados e glamorosos. Os intelectuais hindus desenhavam uma nova nação industrializada sem se importarem com o principal: os pobres camponeses. Gandhi dizia “... Deixe-os curvar suas costas sob o sol inclemente como eles fazem. Então, poderão começar a entender as preocupações dos camponeses.” Gandhi chamou Birla e confidenciou-lhe que gostaria de visitar o Paquistão, mas antes teria de colocar ordem na própria Índia, cuja capital se via sufocada e sem moral. Certa noite falou a um grupo de ingleses que pretendia ser guiado pelas palavras de Confúcio que dizia: “Saber o que é certo e não fazê-lo, é covardia.”
Karachi, Paquistão, dezembro de 1947
Jinnah encontrava-se piorando rapidamente após a conquista de seu sonho. Com a saúde gravemente debilitada não delegava a ninguém alguma autoridade e se agarrava ao poder e aos seus pertences. Imaginava que seus velhos inimigos Hindus não o deixariam que sua nação criasse raízes. Em meados de dezembro, depois de semanas de negociações os dois países chegaram a um acordo na divisão dos assuntos financeiros e matérias finais. O Paquistão deveria receber dinheiro como parte adicional que faltava. A Índia recusava a fazê-lo, pronunciando que o dinheiro seria usado na compra de armas. Finalmente vem a humilhação final de Jinnah: um cheque havia sido devolvido por falta de fundos.
Nova Delhi, 12 de janeiro de 1948
Muito havia mudado desde o encontro crucial. O Comitê de Emergência de Mountbatten havia sido dissolvido e agora ele possuía poderes limitados em relação aos líderes da Índia. Gandhi sentia que somente Mountbatten havia compreendido os significados de suas ações desde a independência. Gandhi possuía tanta fé neste inglês que achava que enquanto fosse Governador Geral não haveria nenhum ato de desonra no governo da Índia. Isso preveniria uma guerra entre Paquistão e Índia. Gandhi, conversando particularmente com Louis, revela que os muçulmanos de Delhi pediam seu conselho sobre permanecer ou não em solo indiano. Deveriam partir para o Paquistão? Ele não poderia continuar oferecendo conselhos sem que ele próprio se arriscasse. Havia decidido fazer um jejum de morte, até que houvesse “uma reunião de corações de todas as comunidades em Delhi.” Deveria surgir um senso de dever. Mountbatten confessa-lhe que “o admirava imensamente e, além disso, Gandhi obteria sucesso onde tudo o mais havia falhado.” O pacifista jejuaria até que a Índia respeitasse a carta de acordos internacionais e pagasse o que devia ao Paquistão.
O Último Jejum: Nova Delhi, de 13 a 18 de janeiro de 1948
Seu último jejum começou as onze e cinquenta e cinco na manhã de terça-feira. Fez sua última refeição às dez e meia e um serviço religioso, nos jardins de Birla House, marcou o seu início. Gandhi, conhecedor da alma de seu povo, intuiu que outra explosão de violência estava perto de eclodir na Índia. Sua decisão de jejuar já dividia a Índia; uns estavam a favor do pagamento da dívida e outros contra. Contudo, “havia lembrado a toda nação quem ele era e para que se posicionava.”
Poona, 13 de janeiro de 1948
Nos novos escritórios do jornal Hindu Rashtra, seus donos estavam perplexos com o que liam. Era a decisão de Gandhi que poria a baixo seus planos. Godse comenta a Apte que a única saída seria matar Gandhi. Isso era uma chantagem política. Nos jardins de Birla, Gandhi começou sua oração pedindo à multidão que purificasse suas almas e se fizessem iguais. “Hindus e Sikhs e Muçulmanos precisam decidir a viver aqui em amizade como irmãos... Se não puderem fazê-lo, minha vida neste mundo terá sido fútil.” Fez-se um grande silêncio. As pessoas “se perguntavam se iriam vê-lo novamente.” Cinco homens encontraram-se no escritório do Hindu Rashtra: um policial, os donos do jornal, Vishnu Karkare, dono do Deccan Guest House e Madanlal Pahwa, refugiado de Punjabi. Godse urgia por ação e pela morte de Gandhi. Foram para a loja de Badge, que colocara sobre um tapete as armas que haviam pedido. Tinham tudo exceto a pistola automática. Apesar de Godse ser um homem pobre deixou duas apólices de seguro de vida, agora poderia morrer. O peso de Gandhi diminuía, estava com 49,5 quilos. Desde o momento em que se envolvera com a política de não violência, as mulheres eram parte importante de seu fronte, pois elas não eram emancipadas. Faziam parte da metade do mundo subjugado. Nos primeiros momentos da luta pela liberdade tinham um papel igualitário ao dos homens. Nehru e Patel visitaram Gandhi e o motivo era o pagamento devido ao Paquistão. Isso tinha desagradado grande parte do Gabinete e Patel tentou dissuadi-lo. A posição de grande parte dos Hindus trouxe lágrimas de tristeza nos olhos de Gandhi, pois era a primeira vez que na liderança, seu povo não demonstrava desejo de salvá-lo. Sob o ponto de vista deles parecia uma tentativa de auxiliar os Muçulmanos. Um grupo de pessoas visitou-o e gritou: “Deixe Gandhi morrer”. O pacifista sentiu-se só.
Bombay, 14 de janeiro de 1948
Nos subúrbios da cidade estava Shavarkar que detestava Gandhi e seus princípios. Godse e Apte o cumprimentaram com um gesto de servilismo e depois eles mostraram um tambor cujo conteúdo era uma seleção de armas. Logo após, dirigiram-se a um hotel. Apenas quarenta e oito horas depois de começar o jejum, Gandhi estava em estado crítico. Encaminhava-se para a morte. Seus rins já não funcionavam adequadamente. Apesar dos apelos para quebrá-lo, acreditava nas palavras de Krishna. Nesse instante Apte e seu parceiro compravam passagens para concretizar seus planos. Gandhi insistiu em um enema que iria debilitá-lo ainda mais. Mesmo assim, proíbe Manu de pedir ajuda. Contudo dez mil pessoas ouviam Nehru suplicar: “A perda de Mahatma Gandhi significaria a perda da alma da Índia.” Por sua vez, Louis cancelou todas as refeições em respeito ao homem que tanto admirava. Um esforço para salvar o líder começara nas ruas de Delhi. Milhares de mulheres Muçulmanas pediam a misericórdia de Alá. O governo da Índia anunciou que fosse feito o imediato pagamento das 550 milhões de rúpias!
Bombay, 15 de janeiro de 1948
Apte contemplava com desânimo a última arma, a pistola. Era feita em casa. Ainda precisavam da pistola imprescindível para o assassinato. Vendo os dedos ágeis de Badge, resolveram trazê-lo para Delhi, também. Chegando, dirigiram-se para Hindu Mahasabha Bhavan. Centenas de fiéis esperavam pela melhora de Gandhi em Birla House e seu discurso. No entanto sua voz não passava de um sussurro. Depois da oração, em fila, essas pessoas passaram para o gesto ritual do namaste. Depois de um jejum de quatro dias, parecia que o velho líder estava melhorando. Contudo, seu aparente vigor era uma ilusão. Desmaiou inconsciente no solo. Caso se salvasse, ficaria inválido para o resto de sua vida, diziam os médicos. Em 16 de janeiro, a Índia viu que sua vida estava em real perigo. Em todos os lugares, comitês empenhavam-se para salvá-lo. Os intocáveis de Bombay enviaram um telegrama dizendo: “Sua vida nos pertence.” Lojas e recintos comerciais fecharam em respeito à sua agonia. Hindus, Sikhs e Muçulmanos formaram a “Brigada da Paz”, marchando e pedindo para que ele desistisse do jejum. Ele pronunciou: “Eu desistiria de ter qualquer interesse na vida se a paz não for estabelecida por todos, em toda Índia e todo Paquistão. Esse é o significado deste sacrifício.” Os médicos declararam que se o jejum de cinco dias não fosse interrompido, a morte seria certa.
Poona, 17 de janeiro de 1948
Godse, na manhã desse dia, dirigia-se a Delhi para matar Gandhi, o qual apesar de estar com sua situação de saúde crítica, não mais sofria e esperava que seu sacrifício redundasse em uma ação efetiva e não apenas em um desejo de salvar a sua vida. Ele dita para seu secretário as condições desejadas para quebrar seu jejum. Eram brilhantes e Nayar as entrega ao Comitê de Paz, rapidamente. Delhi estava em um estado de agitação como não estivera desde sua independência. Milhares de pessoas de todas as castas o apoiavam nas ruas. Nehru saiu de seu escritório para ficar ao lado de seu mestre e chorou ao ver suas condições. A voz do mestre estava ainda mais fraca, mas pronunciou: “Não está ao alcance do poder de ninguém salvar minha vida ou terminá-la. Está apenas no poder de Deus.” Enquanto isso os assassinos despediam-se de Veer Savarkar, que por sua vez fala muito baixo: “Sejam bem sucedidos... e voltem.” Um oceano de pessoas continuava pedindo pela vida de Mahatma. Nehru, ao microfone, reafirma que o único indivíduo capaz de salvar a Índia seria Gandhi. Pyarelal mostra-lhe o documento assinado pelo Comitê de Paz. Contudo ele não quebraria seu jejum até que as assinaturas de líderes importantes não se somassem às outras. Em 18 de janeiro, quase entrando no estado de coma, o presidente do Partido do Congresso foi alertado da necessidade da urgência das assinaturas. Seu desejo realizado, com grande dificuldade conseguem acordá-lo e ao vê-los, sorri de satisfação. Havia conseguido um milagre. Todos os líderes de Sikhs ao R.S.S.S. haviam assinado o tratado. Mahatma balbucia que o que haviam conseguido precisaria estender-se por toda a Índia. Os líderes confirmaram suas adesões. Gandhi começou a quebrar seu jejum bebendo pequenos goles de suco de laranja. Aos setenta e oito anos e doente havia jejuado por 121 horas e 30 minutos! Colocado em uma cadeira e aquecido por um cobertor, sua diminuta figura foi exposta à multidão que o admirava. Contrariando ordens médicas começou a trabalhar em seu tear, com dedos trêmulos, pois tendo começado a comer precisaria fazê-lo para se sustentar!
Nova Delhi, 19 e 20 de janeiro de 1949
Desde a Marcha do Sal em 1930, não havia obtido um episódio tão eficiente como seu atual jejum, o que resultou em uma grande esperança pela paz e harmonia. A mídia mundial não ficou indiferente a isso. Os seis conspiradores, agora, emergiam de trás do templo de Birla para testar as armas obtidas. Nenhuma funcionou! Jinnah, que guardava grande rancor contra Mahatma, ao saber do pagamento da dívida, abriu as portas da sua nova nação. Gandhi seria recebido por ele. Esse velho homem imaginava chegar ao Paquistão de forma dramática e surpreendente: iria a pé até o outro país! Entretanto teria de se recuperar. Como sempre uma aglomeração o esperava para a oração noturna e assim, pela primeira vez, Godse vê o homem que iria matar sem nenhuma emoção. Apte decide que o melhor momento para o assassinato seria durante a oração de 20 de janeiro. Às nove horas da manhã desse dia, um taxi levou os dois assassinos. Com o passar das horas a tensão entre eles é quase insuportável. Mas, à noite, Apte chegara “atrasado para o mais importante redezvous de sua vida.” A plataforma, onde Gandhi orava, era bem mais alta do que esperavam, mas o momento havia chegado. Calmamente pegou seu cigarro, curvou-se e pressionou sua ponta inflamada ao fuso da bomba a seus pés. O barulho da explosão sacudiu o local de oração, mas nada ocorreu e Gandhi pediu calma à multidão. Após o fracasso do atentado os homens voltaram para o taxi que os esperava. Godse e Apte são tomados por uma enorme sensação de fracasso! Um dos assassinos, Madanlal, estava sendo interrogado pela polícia e admitiu que pertencia a um grupo contrário às políticas de Gandhi, que ajudava os Muçulmanos. Admitiu ainda conhecer pessoalmente Savarkar Sadan. Descreveu Godse e citou sua ocupação. A polícia correu para a Marina Hotel, onde se achavam. Não encontraram ninguém. Godse havia se registrado com nome falso na velha Delhi. A polícia encerra o interrogatório por essa noite, mas sabiam que Veer Savarkar estava envolvido no golpe.
Nova Delhi e Bombay, 21 a 29 de janeiro de 1948
As primeiras palavras de Gandhi, após o atentado, foram para não punir ninguém, apenas por acreditarem ser má pessoa. Os investigadores mandam notícias sobre o ocorrido à Bombay, contudo os policiais de Delhi foram extremante “negligentes” e não levaram o documento com os depoimentos feitos, tampouco a identificação do nome do jornal de Godse e Apte. O comissário da Polícia de Bombay, Nagarvalla, foi escolhido para solucionar esse caso devido à sua religião, pois era um Parsi. Esse homem foi impedido de prender Savarkar, contudo contava com a organização inglesa Watchers Branch, formada de pessoas disfarçadas, que o ajudariam. A investigação avança rapidamente até que cheguem à loja de Badge, que havia saído. Ao voltar passou a tricotar seu traje de malha à prova de balas. Acreditava-se que havia se escondido nas florestas da cidade. No dia 23 a investigação deu um salto. Madanlal finalmente resolvera fazer uma declaração completa, assim conseguiriam encontrar o endereço e registro do jornal dos jovens conspiradores. Agora era outro homem quem dirigia o caso, D. J. Sanjevi secreto, vaidoso e ciumento de seu antecessor. Assim negligenciou provas importantes. Ele não fez nenhum esforço para conectar-se com outras polícias. Era impossível o nome de o jornal Hindu Rashtra ser estranho a ele! Com esse personagem faltava o principal: “o senso de urgência.” Os matadores estavam voltando: “um homem, uma arma; um fanático zeloso preparado para sacrificar sua vida para cometer esse assassinato.” Julgavam que o fracasso anterior ocorrera por terem muitas pessoas envolvidas. Desta vez a responsabilidade cairia sobre Godse e o principal elemento era a velocidade, a fim de confundir a ineficaz polícia indiana. “O dia 26 de janeiro de 1948 era memorável”, pois nesse dia, em 1930, milhões de congressistas tinham jurado que fariam a Índia independente. Por outro lado Godse e Apte, em dez dias pela segunda vez, voavam para matar Gandhi. Haviam decidido partir de Bombay sem a arma, pois fora impossível achá-la. Gandhi estava feliz com a harmonia e paz entre as várias facções indianas, entretanto pressentia que não poderia realizar seu sonho de viajar ao Paquistão, marcado para 2 de fevereiro. A odisséia dos dois matadores havia chegado ao fim. Conseguiram obter a pistola com Gwalior, o famoso médico de ervas, que também era contra a política de Gandhi. A arma era uma pistola automática Beretta. O grande trabalho de Gandhi estava quase feito. A capital estava calma e a ordem restaurada. Como sempre Mahatma não desperdiçava um momento sem trabalhar, O dia todo fizera planos e escrevera uma dúzia de cartas, além de estudar Bengali. Elaborara um rascunho da nova constituição para o Partido do Congresso. Um grupo de Hindus e Sikhs aproximaram-se de Gandhi e um jovem com ódio gritou-lhe que já havia causado muita dor e que deixasse a Índia em paz. Essas palavras atordoaram o velho homem, que disse: “faço o que Deus comanda-me, procuro paz em meio à desordem.”! Sanjevi fizera um pequeno progresso e acreditava que os assassinos não voltariam mais. Jimmy, no entanto, continuava sua vigilância em Savarkar e pressentiu que outro atentado estava a caminho, pelo intenso movimento na casa do terrorista. Todavia Gandhi não permitiu um só policial perto dele, desse modo não havia muito a ser feito. Por fim, Rana, Inspetor Geral, descobre as identidades da “trindade vingadora” que havia jurado entrar nos recintos de Birla House. Esses homens estavam hospedados na estação de trem da Velha Delhi e às cinco horas da tarde de 30 de janeiro Gandhi seria assassinado. Mahatma Gandhi passou o resto do tempo disponível de sua vida trabalhando na nova constituição, mas não relaxara, pois não conseguia esquecer a face do jovem enfurecido que durante aquele dia havia praguejado contra ele. Caiu em outro de seus silêncios melancólicos e balbuciou um verso: “Vida curta tem a primavera no jardim do mundo. Observe o esplêndido espetáculo enquanto dura.” Confiava que se morresse em consequência de um tiro, um atentado, ai sim ele teria sido um verdadeiro mahatma. Isso beneficiaria o povo da Índia. A manhã friorenta de 30 de janeiro de 1948 começou exatamente como as habituais. Com suas pernas cruzadas cantou com alguns discípulos os versos da canção celestial do hinduísmo, o Bhagavad Gita. Depois pediu a Manu para que cantasse as linhas de um hino: “Se cansado ou não, Ó Homem, não descanse.” Karkare, preso, descreve aos policiais que ele e Apte ficariam ao lado de Godse, que cuidadosamente colocou sete balas na pistola. Ambos seguiram ao encontro de Nathuram, que já se encontrava no meio do jardim de Birla House. Depois de algum tempo Godse pressionou as palmas das mãos e disse aos jovens: “Namaste. Não sabemos se estaremos juntos novamente.” Sem olhar para trás prosseguiu para a casa onde Gandhi fazia suas orações. Mahatma tivera várias entrevistas neste dia e a mais difícil fora com Patel, que insistia em sair do governo. Louis Mountbatten havia alertado que Nehru e Patel eram importantíssimos para o país e teriam de aprender a trabalhar juntos. Depois disso, Gandhi volta para o tear. Enquanto girava sua roda do tear, os assassinos já se encontravam próximos a ele. Karkare relata à polícia que Godse estava absorto e parecia esquecer-se de seus companheiros. Manu estava nervosa, pois já passara dez minutos das cinco horas e seu tio-avô era muito pontual. Observando seu relógio sai apressado para a oração. No momento em que alcançou o último degrau, havia um sussurro da multidão: Bapuji, Bapuji. As mãos de Godse estavam nos bolsos de seu disfarce; sentiu a arma e calculou que estava na hora certa. Dois passos, três segundos, o assassinato seria fácil e mecânico. Manu o viu e pensou ser mais um dos seguidores de Gandhi e pediu-lhe para abrir caminho, pois já se encontravam atrasados. Ela calculou que ele queria beijar os pés do mestre. Com a pistola escondida disse: “Namaste, Gandhiji”. Godse derrubou Manu e expos a Beretta em sua mão esquerda. “Godse apertou o gatilho três vezes... Nathuram Godse não havia falhado... os três tiros atingiram o peito da frágil figura que avançava em sua direção.” Manu viu as manchas vermelhas de sangue manchando seu traje branco. Gandhi ofegou: “He Ram!” (Ó Deus). Eram exatamente dezessete minutos depois das cinco. Mountbatten ao receber a notícia parte, imediatamente, para Birla House, que já se encontrava repleta de pessoas. A hipótese de o assassino ser um Mulçumano levaria a Índia ao maior massacre já presenciado. O diretor da All India Radio decidiu continuar a programação normal para evitar tumultos. Somente mais tarde, a informação sobre o assassinato do defensor da independência da Índia por um Hindu da casta brâmane foi divulgada. Seu corpo foi levado para o interior de Birla House. Dentre as pessoas que lamentavam sua morte estavam Nehru e Patel. A luz de mais de dezenas de lamparinas de óleo de cor alaranjada fizeram com que seu pequeno corpo tivesse uma aura triste e gentil. “uma inacreditável aparência de repouso cobria sua face.” Mountbatten iria repetir que “Mahatma Gandhi iria para a história ao lado de Buda e Jesus Cristo.” O mestre pedira que seu corpo fosse cremado em vinte e quatro horas, em estrito acordo com o costume Hindu. A remoção de seu corpo seria conduzida como uma operação militar. Todas as cidades indianas lamentavam sua morte assim como as paquistanesas, onde as mulheres choravam o desparecimento de seu protetor. Seu corpo foi elevado ao segundo andar em Birla House e quando Nehru discursou havia lágrimas em seus olhos. Chegaram mensagens de condolências de todas as partes do globo. Presidentes de diferentes países enviaram seus pêsames pela morte desse homem tão humilde e brilhante. Uma pirâmide funerária esperava recebê-lo em Raj Ghat, o local de cremação, às margens do rio Jumna. Seu corpo havia sido coberto pela bandeira da Índia independente. Fora a primeira vez que as tropas de guarda do antigo vice-rei tinham honrado um indiano e estava recebendo, na morte, uma homenagem além dos sonhos de qualquer vice-rei. Suas cinzas foram jogadas nas águas do rio em direção ao mar, no décimo segundo dia depois da cremação. Três milhões de pessoas seguiram esse ritual!
Epílogo
Gandhi, com sua morte, conseguiu terminar o que não conseguira em vida: a insensata matança entre vizinhos e irmãos das cidades e vilas da Índia. Seu assassino, N. Godse foi levado em custódia, sem resistência, com a arma na mão. A prisão dos outros conspiradores foi rápida. Foram enviados para julgamento em 27 de maio de 1948 e Godse argumentou que era o único responsável pelo atentado. Ele e Apte foram condenados à morte. Louis Mountbatten renunciou ao cargo em junho de 1948. O último ato oficial de sua esposa foi visitar os campos de refugiados, aos quais ela devotara tanto de seu tempo e energia. Jinnah morreu em setembro de 1948, em Karachi, seu local de nascimento. Dois golpes de estado seguiram-se. Como Gandhi havia previsto a divisão do país ocasionou muitos problemas. Em 1965 e 1971 as duas nações iriam confrontar-se e os contínuos conflitos enfraqueceram-nas. No entanto, a Índia seguiria a tradição do século, com um vigoroso desenvolvimento industrial e uma nação unida e forte. Mountbatten continuou um homem de sucesso político e princípios irretocáveis, mas foi assassinado pelo IRA em 1979 e Edwina havia morrido em 1960, em Borneo, de fatiga por tanto trabalho.

Janeiro de 2010, REGINA

Fotos:
Da esquerda para direita: Gandhi, Gandhi e Nehru, Mountbatten, enterro de Gandhi,
Vice-reis e Gandhi, Nehru, Jinnah e Gandhi, Birla House,
Gandhi e esposa, Patel e Gandhi