quarta-feira, 20 de maio de 2009

O RIO E SEU SEGREDO – A pianista que desafiou Mao





DE ZHU XIAO-MEI


Zhu Xiao-Mei, nasceu em 1949 em Xangai. Esse ano fora difícil e centenas de pessoas morreram de frio e fome. A guerra civil (Partido Comunista versus Kuomintang) havia desorganizado o país. Ela nascera em uma família abastada, do lado materno e paterno, mas agora estavam sem quase nada. Um piano havia sido salvo. A pequena Xiao-Mei é incentivada pela mãe a tocá-lo, pois possuía o dom para essa arte. Moravam em Pequim, em uma comunidade muito pobre, pois seu pai que era médico na tradicional cultura chinesa, de plantas e ervas, estava desempregado e tivera que mudar-se para perto da irmã. O objetivo era conseguir um trabalho qualquer, o que o deixava deprimido e violento. Sua mãe, pianista, vai lecionar em uma escola. Agora ambos precisavam trabalhar. Mais ainda sua mãe, que se tornara a provedora da casa e protetora das cinco filhas. Xiao-Mei vai para um Conservatório de Música, onde conhece seu primeiro mestre, um jovem que acredita nela e lhe ensina uma ampla técnica. Mao obriga as crianças e jovens do país “a se reeducarem”, ou seja, a denunciarem seus amigos, pais e parentes e retrocederem intelectualmente, nivelando-os ao mais simples grau do campesinato. Devido a diversas ocorrências, a agora adolescente Xiao-Mei, que aprendera a amar os principais compositores e escritores do Ocidente, é persuadida a rever sua posição e admirar somente o que fosse genuinamente comunista e pueril. Assim teriam uma China forte e para todos. Xiao-Mei passa a envergonhar-se de sua origem burguesa e a duvidar de seus pais. Mao exige que toda a educação seja interrompida e somente a Revolução desenvolvida e divulgada por toda China. Professores são açoitados e mortos diante de alunos, sob a acusação de elitização. Filhos são obrigados a denunciar amigos e familiares e os estudos relegados ao nada. Todo material intelectual é queimado ou destruído na frente dos estudantes. A avó de Xiao-Mei é obrigada a voltar para Xangai, assim como milhares de outras pessoas idosas. A morte e assassinato são aceitos para a melhora do país. A jovem Xiao-Mei nos anos de 1967 e 68 está convencida da veracidade dessas atitudes; ela que era sensível e educada fora totalmente “reeducada.” O mais irônico é que o lugar onde Mao havia nascido se transformara em um “Santuário” com direito a “imensas peregrinações” de pessoas fanatizadas por ele. Algum tempo depois, ele decide que o ensino deveria ser retomado, mas não há material didático no Conservatório, nas universidades e nas escolas. Assim, peças com influência albanesa são escritas, influenciadas pela poderosa senhora Mao. Sem que saibam, longos trechos de música clássica ocidental são transcritos para esses trabalhos eminentemente chineses! Xiao-Mei volta a seu piano dando concertos em diversos lugares. Em 1968, os sete membros de sua família são separados pela vasta China, por ordem de Mao, que inicia uma nova política de mandar para o campo os citadinos. Dezessete milhões de chineses foram exilados. Suas irmãs partem para diversos lugares longínquos do continente. Depois seu pai, condenado segue para um campo de trabalhos forçados e ela própria vai para a Mongólia - Zhangjiako, junto com diversos estudantes de arte, da qual a China sempre fora tão rica. Lá encontra o fim de sua saúde pelo excesso de trabalho e total falta de salubridade do ambiente. Enviada para um imundo hospital, consegue se recuperar; já está com quase 20 anos, nossa pequena revolucionária, que perdera dez quilos. Foram transferidos para Qingshuire, onde a vida é ainda pior. Sua mãe também partira e a avó morrera sozinha. A temperatura é glacial e o tédio, o trabalho pesado nos campos e a falta de respectiva reduzem a vida da jovem à total desesperança. Três anos já se passaram. Depois de fugir para Pequim, a fim de ver sua mãe e ser obrigada a voltar, foi transferida para o quarto campo de trabalho forçado. Lá ela está obcecada pela música, pois voltara a tocar. Quer trazer seu piano de Pequim. Com grande dificuldade e perigo sua mãe consegue enviar, por trem, o piano a Zhangjiako, para alegria dos jovens músicos. Além disso, conseguem outros instrumentos e algumas partituras que são copiadas por Xiao-Mei. “... o campo e suas imediações ressoam a música de Bach, Chopin e Rachmaninoff.” O primeiro concerto é realizado e a emoção dos ouvintes é incontida: não podiam mais ser privados de sua profissão. A situação tornara-se intolerável. O campo estava repleto de jovens artistas sensíveis e famosos e todos eram tolhidos de sua profissão, nas mais variadas áreas da arte. Entretanto, entre si iniciavam-se em novas áreas de conhecimento artístico. Em 1973 a matriarca da família é operada de câncer e Xiao-Mei foge para cuidá-la. Nesse tempo a jovem consegue assistir, clandestinamente, a uma apresentação da Sinfônica de Filadélfia em Pequim, e, pela primeira vez, ouve o som de uma orquestra! Xiao-Mei resolve, voluntariamente, voltar ao campo temendo maiores complicações. Finalmente, em 1974, encontram uma locação para ela dar aulas de piano em uma remota cidade da China. Sua mãe pede que recuse. Agora ela tem liberdade, mas não possui mais nada. Mestre Pan e Xiao-Mei reencontram-se e ela passa a ter aulas com ele, pois desenvolvera, nesses anos todos, um toque mecânico, muito alto e rápido. Seu querido piano também retornara... Mei consegue dar um concerto na sala do Balé de Pequim, totalmente lotada. Era o primeiro concerto desde a revolução Cultural. Nesse mesmo ano morre Mao Tse-Tung. Em 1977 as coisas começam a mudar. O Conservatório reabre suas portas, mas ela é recusada por ter passado da idade limite! Após uma greve branca os estudantes mais velhos são aceitos. Ela teria que recuperar dez anos, em três meses de preparação, para a audição. Xiao-Mei toca tão maravilhosamente bem que os espectadores do balcão a aplaudem, apesar da proibição de qualquer manifestação. Para orgulho de seus pais, uma filha havia chegado ao ensino superior chinês. Com mais abertura política, a jovem conhece diversos intelectuais atuantes, mas seu sonho é partir do país. O auge da influência americana chega à China em 1979, com o violinista Isaac Stern, e ao ouvi-lo Xiao-Mei decide morar nos Estados Unidos. Como, ainda não sabe. Insistentemente consegue, depois de vários obstáculos quase intransponíveis, partir para Hong-Kong e depois, quem sabe, América. Seguindo o conselho de seu pai não voltará mais à China. Isso ocorreu em 1° de fevereiro de 1980, quando tinha 31 anos. Ela morou com primos em Hong-Kong por apenas dois meses, para comprar um bilhete aéreo para a Califórnia. Seu sonho estava começando a se realizar. Voando para o Ocidente, no avião, percebe que sequer ouvira falar de Lao Tse, um dos maiores filósofos do mundo. Vivera quinhentos anos antes de Cristo, quando “compreendeu então que a renúncia às vaidades era a via da sabedoria e decidiu se exilar.” Ela sendo chinesa não sabia disso! Uma professora americana que sentara ao seu lado no avião lhe contara. Estivera isolada da própria pátria pela Revolução Cultural de Mao. Trabalhando como faxineira em uma mansão no novo país, pois não sabia falar inglês, e desesperada pela falta que a música lhe fazia é salva por um telefonema de Like, seu amigo chinês, que lhe propõe estudar no Conservatório de Boston. Além de ser aceita depois de seu concerto, recebe uma bolsa de estudos. Ela se inscreve com um dos melhores professores, Gabriel Chodos, mas a prova escrita é devolvida em branco, pois não entendera uma palavra sequer. Em Boston também não é fácil, pois não dominando o idioma nem os hábitos ocidentais, não consegue sequer chegar a casa. Sendo muito competente e tenaz, consegue que Gabriel Chodos a ouça tocar e passam a trabalhar juntos, apesar de sua música não soar ocidental e sentimental como ele gostaria. Ouvindo um conserto de seu professor recebe uma lição: “Mostrar a simplicidade do que parece complexo e a complexidade do que parece simples”. Seu método de ensino é duríssimo e faz com que ela leia a partitura com lupa. Quer que levante a mão do teclado, ao final de cada frase musical. Isso constituía um enorme esforço para a jovem. Depois de Bach e Schumann vem Beethoven e com ele o teste final – teria ela alguma coisa a dizer enquanto tocava? Sim, agora estuda Schumann e “uma hora de aula para uma linha de música!” Xiao-Mei, com 31 anos, vai se tornando ainda mais firme e amadurecida do que já o era, vencendo todos os obstáculos que se apresentassem, com grande sabedoria e comedimento. Ela muda-se para a casa de uma grande flautista, Dominique. Entretanto lá não se come, pois Dominique é extremamente frugal e excêntrica. Ganhando poucos dólares para cozinhar para seus convidados conhece um rico casal, que ao ouvir sua história, resolvem ajudá-la a construir uma escola na China. Com um salário tão irrisório é obrigada a procurar outro emprego. Presentemente, é garçonete de um restaurante chinês, em um dos piores bairros da cidade, Red Line, tornando-se impossível sua estada nesse lugar, freqüentado por prostitutas, drogados e bêbados. Depois foi ser “lanterninha” na Orquestra Sinfônica de Boston. Dominique e seu professor não suportavam mais seu péssimo inglês e a flautista lhe oferece um curso intensivo em Nova Inglaterra. Agora em Vermon ouve o famoso pianista Rudolf Serkin, legendário por suas interpretações, apaixonando-se por sua técnica. De tanto ouvi-lo em discos e rádios, volta com uma grande mudança em seu estilo e técnica para melhor. Sua ousadia é, comprovadamente, sua melhor conselheira. Formando-se no conservatório, resolve dar-se um presente... Sua primeira boneca! Trabalha como professora estagiária em Brattleboro, onde dera um concerto e fora muito elogiada. Dar aulas de piano é insuficiente como salário e ela está sempre em busca de novos cargos e se muda, em um ano, trinta e cinco vezes! Xiao-Mei é informada que precisavam de uma professora titular, na escola de música de Brattleboro. Feliz, apresenta-se no serviço de imigração para obter o green-card, quando é informada que seu visto expiraria em 3 dias e precisaria voltar para a China. Desolada só lhe resta uma esperança: casar-se com um americano. Seus amigos Tom e Greg oferecem-se para casar-se com ela, um casamento branco. Ela fica com Tom, que tem um sobrenome que consegue pronunciar. Xiao-Mei encontrava-se infeliz por ter que mentir às autoridades americanas e sente-se muito só: sem sua família para ajudá-la, apesar de seus maravilhosos companheiros. Nesse ínterim, a jovem recebe uma carta tocante de seu pai, o qual de intransigente e por vezes brutal, tornara-se pacífico e feliz, através dos estudos dos grandes mestres chineses. “Praticar sem parar, sem procurar, sem forçar, e pouco a pouco a compreensão da vida e das coisas começa a surgir sem que nos percebamos: é esta a filosofia chinesa, que pode ser sentida, sem necessariamente ser explicada.” Os chineses são mais intuitivos que os ocidentais, que procuram a razão. Gabriel Chodos a fez trabalhar muitíssimo as frases musicais. Isso vinha de encontro à sua filosofia de vida. Xiao-Mei estava meditando e lendo Lao Tse e isso trazia-lhe paz de espírito e melhorava sua técnica. Desse modo aprimorou ao máximo seu dom, sem pensar em ser recompensada financeiramente por isso. Era puro prazer e deleite. A pianista sentia uma forte atração por Paris, pois fora criada em Xangai, no bairro francês, e sua mãe sempre lhe falava sobre o Louvre e suas obras. Além disso, havia comprado com muito sacrifício o livro de Rodin para se inspirar. Sentindo-se um peso para Tom e Greg, resoluta, muda-se para Paris apesar de ter sido fortemente desaconselhada. Sua amiga Xiaoquin morava na cidade e poderia recebê-la. A jovem sente que a França e a China são dois países, de certa maneira, complementares. O ponto crucial dessa decisão foi uma belíssima carta, que Victor Hugo escrevera em resposta a uma pergunta do capitão Butler, sobre o saque do Palácio de Verão da China pelos franceses. Ele era totalmente contra e a magnitude dessa carta a convenceu. Ela voa para Paris em dezembro de 1984. Teria de recomeçar tudo de novo: emprego, aprendizado da língua, vistos, adaptação. Sua amiga consegue que vá conhecer o famoso pianista Marian Rybicki. Com apenas 400 francos, o preço de uma hora de aula, vai a sua casa. Para seu desespero ele só lhe faz perguntas e o tempo vai passando. Sem desgrudar os olhos do relógio passa a tocar Davidsbündlertänze, quando a hora chega ao fim e ela interrompe bruscamente a música! Marian iria lembra-se do episódio para sempre, pois se tornaria seu professor sem cobrar, apenas por seu talento! Morava, agora, em um pequeno quarto, mas seu objetivo aos trinta e seis anos era ser reconhecida. Todavia Paris lhe é muito dura. Seu visto se expirara e ela precisa voltar para Boston! Viver lá por mais algum tempo e conseguir o green card, para morar na França. Maravilhosa Xiao-Mei! Assim é feito. Nessa cidade estuda as Variações Goldberg de Bach à exaustão. Encontrara-se nessa peça, sua maneira de tocar piano tornara-se a cada instante “mais natural.” As pessoas queriam saber de onde vinha tanta energia e disciplina. Ela não sabe o que lhes responder. Ela se admira “ao encontrar nas Golderg os elementos mais essenciais” da sua cultura chinesa. Passado o tempo estipulado, ela volta à Paris com seu passaporte americano e sua amiga, senhora Aalam, recebe-a muito comovida. Com a ajuda dessa mulher terá sua própria casa, um estúdio pequeno, mas só seu. Em breve chegaria um piano de calda, que comprara, a fim de dar aulas particulares e exercitar-se. Toda a força e competência dessa jovem foi logo reconhecida pelas pessoas que a cercavam. Xiao-Mei tem o raro dom de aceitar a ajuda que lhe é oferecida, com elegância e graça. Dará um concerto na linda igreja parisiense Saint-Julien-le-Pauvre. Está segura de si. A igreja está tão lotada, que as pessoas passam a se sentar no chão. Seu sucesso viera aos 40 anos! Um segundo concerto aconteceu, ela gravou um disco e as críticas no Le Monde a seu respeito foram fenomenais. Começou a ensinar no Conservatório de Paris. Chegara a hora de voltar para a China. Nas férias de Natal ela regressa e o avião pousa no aeroporto de Pequim. Todos a esperavam no aeroporto, exceto sua mãe, que adoecera de emoção. Seus pais estão mais envelhecidos e mais pobres, resumidos a um apartamento de vinte e cinco metros quadrados. A acolhida foi maravilhosa, mas Mei sentira remorso por não ter podido ajudá-los. Sua mãe estava famosa devido a uma canção que escrevera há tempos e estava tendo aulas de pintura, mas modesta, quem conta as novidades é seu pai. Xiao-Mei compra-lhes eletrodomésticos para auxiliá-los nos serviços domésticos. Seu querido piano, apesar da pobreza, havia sido afinado e não vendido. A pianista toca Devaneios de Schumann, como sua mãe o fizera, quando ela tinha apenas três anos. Após doze anos Mei volta ao Conservatório, que está muito maior, e conversa demoradamente com mestre Pan. Será a última vez que se encontraram, pois se juntaria aos filhos em Singapura. De volta à Paris seu sucesso cresce, contudo ela se sente assustada e desconfortável com tantas viagens e concertos pelo mundo. É o preço que teria a pagar. Ao apresentar um concerto no Teatro de la Ville, para uma multidão, adoece antes e depois dele, como sua mãe. Precisava de coragem e aconselhamento para voltar a tocar, já que se tornara uma das mais brilhantes pianistas de Paris. Uma das suas maiores emoções foi o concerto de Leipzig, onde Bach trabalhou de 1723 até sua morte. Aí foi ovacionada! Em sua peregrinação para conhecer a igreja onde Bach está enterrado, sentiu-se completamente realizada. Não queria mais nada. “A Revolução Cultural me fez em pedaços” reflete certo dia e mais ainda “Só a fé na música me dá forças para ir até o fim.” Em 2003, descobre que está com câncer. Ela desmorona. Nesses instantes de dor, gostaria de tocar tudo o que ainda não havia tocado. Está resolvida a esperar a morte sem fazer nada, mas é convencida pelos amigos a se tratar e se recuperar. Mei escreve: “Mais uma vez a música salvou minha vida.” Sua amarga experiência na adolescência faz com que sinta prazer em tocar para idosos, doentes e prisioneiros. Em 2002, obtendo a nacionalidade francesa convida seus pais e família para visitá-la. Sua mãe, que está com Alzheimer, e sua irmã aceitam o convite. Passeiam pelos museus de Paris e pelo Louvre, que sua mãe tanto amava. Comove-se ao vislumbrar as obras, mas logo já se esquecia de tudo. O sonho de sua mãe havia se realizado, mas não tinha consciência do fato! Em 2006, Xiao-Mei sente que chegara a hora de visitar seus companheiros de cativeiro. Mais de vinte anos haviam se transcorrido. Um mora em Tóquio e outro está no Canadá, onde é um famoso compositor. Retornando à Pequim seu pai quer visitar o túmulo de seu melhor amigo, em um lugar bastante distante. Depois de se recolher por quase duas horas no local, pede a filha para enterrá-lo lá, também, pois Lao Xue fora o único que realmente acreditara nele, naqueles anos de chumbo. Depois de rever a amiga Aizhen, chegara o momento de ir para Zhangjiako. Lá tudo havia mudado, desde a prisão até a própria cidade, que crescera e prosperara materialmente. Observa o quanto o cristianismo havia se espalhado pela China e dado esperanças a eles. Quanto a ela prefere a solidão das filosofias chinesas. Nessa última página do livro, ainda não se esquecera de seu velho sonho – criar uma escola gratuita de piano para jovens pobres. Esse seria para sempre seu ideal!

sábado, 9 de maio de 2009

TRILOGIA DAS BUSCAS de CARLOS FRYDMAN



Um Cabalista Excêntrico


O livro começa muito bem humorado, contando sobre um enterro, quando um homem bêbado chama a jovem falecida, que já descera à sua tumba, de Mariana. Não, ela era Marina, uma belíssima mulher invejada pelas outras e esse engano fora um prato cheio para fofocas e mal-entendidos por parte das pessoas presentes. José, um motorista de camburão para cadáveres, contou essa história para levantar o espírito de seus colegas de trabalho que adoravam piadas. José era um talento de interpretação, mas não pensava seriamente nisso. Era humano e gostava de aliviar a tensão nesses momentos tão tristes. “Com José o corriqueiro tomava um novo sabor.” “Observar e interpretar a vida através dos féretros tornara-se uma verdadeira obsessão de José”. Vivenciar a morte transformou-se no norte desse homem que já não mais a temia. “A morte em si não é um castigo. Pode ser uma libertação”, pensava ele. Essas observações eram gratificantes e, além disso, havia um lado político-social. Em dado momento, passou a ser um “aprendiz da morte e da vida”. Aos poucos ficamos sabendo que José estudara sociologia por dois anos, viúvo e pai de dois filhos, era muito alto e forte, com olhos profundos, bigode grande, dentes alvos e tinha 45 anos. Em uma ocasião teve de transportar um cadáver judeu de um hospital geriátrico para o velório judaico, que exigia determinadas normas de conduta. Era um mau dia, pois se tratava de uma sexta-feira, véspera do Shabat. O morto era magro e ossudo e já estava preparado. Entretanto, em um canto da sala havia uma bela jovem, que chamara sua atenção, chorando por estar atrasada e perder o funeral de seu amado avô. José a convence de acompanhá-lo no camburão, apesar de sua relutância inicial. Seguindo caminhos alternativos e desertos são surpreendidos por ladrões, que imaginavam ser o caixão um disfarce com muambas ilegais. Ele desce do carro, mas a jovem... desmaia. Ao abrirem a tampa do esquife, se deparam com um morto vivo que balbucia: “Ich bin Golem[1].” Estava em estado de catalepsia. Felizmente um carro de polícia passava e os ladrões fugiram deixando um pacote pesado, cheio de cadernos e livros. “O medo de José era maior em relação à moça do que ao morto falante.” José e Marta chegam ao cemitério e ela é recebida pela família. Já atrasadíssimo e assustado com o cadáver deteriorando-se, procura, no Instituto Médico Legal, seu amigo médico para saber como agir. Carlos detecta batimentos fracos, seguidos da morte verdadeira. José, aturdido, “percebeu o quanto era frágil diante de situações inusitadas. Rumou com o cadáver em busca do rabino, com seis horas de atraso. Não poderia enganá-lo, pois o “respeito pelo rabino desestimulava-o a mentir.” “Leve o morto para o Albert Einstein.” diz o homem. Seguindo para o hospital “ouviu um tilintar debaixo do banco lateral.” Era o celular de Marta e havia outros objetos pessoais por todo o chão. Chegando ao seu destino “um choro ecoou, uníssono, pelo pátio”, mas com paciência “o rabino consegui arrefecer os ânimos.” O primogênito ajudou-o a abrir o caixão e pegar suas coisas pessoais. No fundo do bolso, havia uma caderneta com informações para guardarem seus manuscritos e diários, dirigidas ao rabino. Depois de algum tempo, já acalmado pelas palavras do rabino, entrega o pacote, amarrado com uma corda fina. Eram vinte e um cadernos, que formavam um diário. Pretendendo “dar continuidade à milenar vivência do povo judeu”. O defunto escrevera o texto em iídiche e as datas em hebraico. Fazendo tradução simultânea, o rabino pôs-se a lê-lo para José.
29 de fevereiro de 1966
Ele fora um homem viúvo e, aos 75 anos, largado pela família em um asilo judaico. Seu primeiro ato ao chegar é olhar-se no espelho, com sua face muito mais envelhecida do que sua idade real e desejar vingança. Sim, vingança contra todos que contribuíram para esse desenlace, pois sentia que ainda possuía “vitalidade”. Comprara muitos cadernos onde escreveria sua vida desgraçada, pois tempo é o que não lhe faltaria. Queria, obstinadamente, “ser um Golem que aspira vingança, que perturba as mentes malévolas...” Queria uma metamorfose. José quer saber o que é um Golem e Cabala[2] e o rabino explica.
1°de março – segundo dia
O velho judeu percebe que as pessoas, ali, estavam sem objetivos a não ser esperar a morte. Contudo um senhor confessa-lhe que a sabedoria era importante e esquecer o passado também. Titubeando quanto à sua própria determinação, resolve seguir em frente. José interrompe novamente a leitura e ambos descobrem que as datas agora estão nas seqüências dos dias que o levariam até se tornar um Golem e depois morrer. Tornara-se um cabalista no sétimo dia e sentia saudades de sua mulher. Gostaria de compartilhar seu misticismo com ela. Desejava “através da Cabala, compreender, filosoficamente, a relação entre Deus e a criação...” Queria ser o oposto do que fora: “um submisso cordato.” O Rabino observa que a obsessão de revanche daquele homem era-lhe muito prejudicial. “A consciência é um empecilho à loucura” escreve. Faz questão de lembrar que lera todas as peças de Shakespeare e importantes obras judaicas. O Rabino está extasiado com sua obstinação e desejo de sustentar seu ódio. Ele se surpreende como o velho se apoderara do Cabalismo, que outrora tentou acabar com o misticismo religioso. Deus estava mais distante dele, sem que percebesse. Agora o autor nos conta que ele vendia confecções, dominava Shakespeare e havia vivido na Inglaterra do pós-guerra. Sabemos também como ele conseguira a solidariedade de sua família, quando caiu em um conto do vigário, na Bolívia, e eles o apoiaram sem censurá-lo. (Afinal sua vida não era tão má assim). Ah! Seu nome era Moishe. Logo depois leva outra rasteira de um ex-gerente de banco. Sendo um crédulo sua mulher acaba dizendo: “Moishe, você é um schlemazel.[3]” E em seguida “Moishe, você é um homem bom demais... Ele pensa que “são infinitos os mundos que habitam este asilo”, mas logo volta à sua meta de transformar-se em um Golem e se isolar. Desprezava as visitas dos filhos, por serem muito formais, mas ele também o era - formal e frio. Descreve as rasteiras continuavam em sua vida por sua extrema honestidade e que seu “povo se caracterizava por uma ética milenar”. Em nome disso, diversas vezes ele ficara “quase rico ou quase remediado.” Agora sabemos, através de um amigo comunista de seu filho, que o primogênito era um homem honrado e formado pela Sorbonne e PhD em História e Filosofia. (Nada mal hein, Sr. Moishe). Esse jovem senhor, Aloísio, deixa-o embaraçado, porquanto tivera muito preconceito contra ele quando companheiro de seu filho, pois era um esquerdista ferrenho. Descobrindo que na realidade era judeu e seu nome real Mordechai, passam a estabelecer uma vigorosa amizade muito valiosa para os dois. Percebe que certos preceitos do marxismo e da religião não estavam tão desconectados quanto pensara. Eles discutem ciência e religião e o velho judeu explica-lhe que “a Cabala engloba além de um objetivo exterior, a aptidão da alma para conceber idéias sobrenaturais.” Esses encontros eram regados a chá, geléia e biscoitos que o rapaz sempre trazia. Através de explicações lúcidas sobre o misticismo e religião e também o significado de um Golem, Moishe percebe que jamais chegariam a uma conclusão, relativa à filosofia ou religião, pois o rapaz tinha sempre um contra-argumento perspicaz. Com isso ficamos sabendo sobre a Tora, ensinamentos judaicos e lendas antigas. Moishe, ansiosamente, conta-lhe que deseja tornar-se um Golem, para surpresa de Mordechai. Acrescenta ainda que queria “ser um Golem que me leve a resgatar a vida que me roubaram!” Perplexo, o rapaz tenta explicar-lhe que a metamorfose não o mudará e não mudará seus agressores e, por que não, transformar-se em um Justo? Aconselha-o também a escrever seus enormes conhecimentos a fim de que fossem úteis à outras gerações e pessoas. Contudo o velho se ofende e acha que ele não o considera Justo. Mordechai lembrava-se da atmosfera fria e corrida de sua casa, mas tinha certeza de que seus filhos o compreenderiam, principalmente Marcos que “é uma belíssima criatura.” Contudo ele entendia seu companheiro de confidências. Moishe, entretanto, sentiu-se “mortalmente ferido com aquelas palavras duras... desse verdadeiro amigo.” Mas talvez uma saída estivesse mesmo no amor e justiça. Porém, no dia seguinte, pensou “Não pretendo abandonar tão facilmente meu direito de revide contra esse mundo hostil.” Moishe, finalmente, conversa com o Rabino, homem atencioso e paciente, mas despreza o schames[4], que mantinha um sorriso zombeteiro no rosto. Moishe escreve um belíssimo poema, como uma prece, que não é aprovado pelo Rabino que lê suas memórias, afirmando: “Pobre homem, tornou-se uma alma penada ainda em vida”. Para consolar o velho judeu, o rabino do asilo procura-o e quer saber como fora levado a estudar a Cabala. No entanto, quando soube que era para fazer justiça através dela, achou que aquilo “beirava a heresia” e pior ainda, ele queria também vingança. O bedel deveria estudar junto com ele os livros sagrados, pois era um homem estudioso e tranqüilo. Isso arrasou nosso pobre herói, que o detestava. Um dia encontra-se com o idoso bedel e irritado com seu sorriso e fala, empurra-o com força e sai, deixando-o caído, gritando de dor, com duas fraturas na perna! Mais tarde, ouve baterem na porta com força. Era o Rabino que o avisa que o pobre schames havia sido enviado ao hospital para ser operado. Desse modo, apavorado é conduzido à enfermaria por um médico, após ter sido sedado. Acordou em um cubículo, em uma cama de ferro. Alarmado aciona a campainha e é atendido pela bela doutora Vanderlea. Estava em uma casa de saúde mental, porém não era considerado louco; só tivera um rompante e precisaria ficar lá por mais dois dias. Assustado, pede para que o filho Marcos traga seus cadernos, seu “precioso diário.” A visita de todos os filhos amorosos fora um alento e tanto. “Sentiu-se salvo.” Visitado pelo primogênito e Mordechai, ouve boas notícias, porém quando este sai, seu filho cautelosamente conta-lhe que o bedel havia morrido no hospital com infecção generalizada! Não poderia mais voltar ao Lar dos Velhos. Chorou copiosamente e acordou só. Retomou a escrita de seu diário, com uma grande tristeza, mas isso seria uma maneira de continuar a viver e mostrar sua indignidade. A médica pedira-lhe para não perder seu humor típico dos judeus que ela tanto apreciava. Entretanto talvez não merecesse mais qualquer perdão. O Rabino condói-se com seu estado e José acredita que ele salvou sua vida e a da jovem que o acompanhava no camburão. Depois de todas as cerimônias judaicas para o sepultamento ele é enterrado pelos filhos e presentes. (Nesses capítulos temos descrições sobre o enterro, as preces e tradições hebraicas). Mordechai deveria encontrar-se com a família, pois o diário mostrara que ele fora um personagem importante para Moishe. O encontro entre o Rabino e Mordechai acontece com a presença de José, que muito atento, aprende com eles que os excessos na religiosidade se dão por questões políticas e econômicas, a fim de camuflar os verdadeiros motivos das guerras e crises. Nesse momento chega uma carta do ex-bedel para o Rabino Levy. Nela ele faz uma análise correta das condições que levaram Moishe a aquele estado de quase transe. Observa sua religiosidade, seus estudos, seu caráter e conclui que ele deveria ser perdoado, pois era “um homem bom e sincero”. No final assinala: “Vamos tirar esse homem do abismo.” Nesse ínterim José e Marta passam a se encontrar e “o amor se enraizou nas entranhas e nas almas.” Após o primeiro encontro entre eles em um motel, o coração de José não resiste a tanta felicidade... e ele morre. Marta ficara grávida de José e tornara-se amiga de sua irmã. Depois de conhecer sua família passa a ser a mãe de seus três filhos. Um interessante epílogo fecha a estória.




BUSCAS

“Desde quando despertou, Laibl vacilou entre o eu de seu pai e o eu de seu tio”. Ele era, agora, um adolescente de 13 anos, muito sagaz, que vivia entre as influências de seu pai, Schloime, e o irmão de sua mãe, David. Estamos nos estados Unidos nos fins da década de 1920. Schloime é um líder sindicalista comunista, que luta contra a repressão do governo e da sociedade americana contra os imigrantes estrangeiros. David é o típico judeu inteligente, que vê em todas as ocasiões uma oportunidade para fazer negócios, prezando muito sua liberdade e seu desejo de ser autônomo. O país está perto da depressão de 1929 e o garoto, assustado, está dividido entre os ideais de Schloime e David. “Ele sabia que seu pai, sendo um líder sindical, estava envolvido até a medula” se uma greve geral sobreviesse.
“A dicotomia sentimental de Laibl em relação ao pai e ao tio tornava-se um abismo de sofreguidão.” Vivendo no Lower East Side de Manhattan e sendo um bairro onde diversas comunidades estrangeiras preservavam seus hábitos, não existia rotina. “Pouco se podia programar. Mas tudo impunha ação.” Esses fatos fizeram com que o jovem Laibl fosse atraído para a rua. Laibl cresce e se apaixona por música acompanhando a carreira de um amigo, George Gershwin, que agora se tornara muito conhecido. Mas ele se interessa também por literatura e teatro. Com quinze anos resolve parar de estudar e provoca uma prontidão em sua casa, pois consideravam isso inaceitável – um homem sem diploma superior. Ele praticamente sustenta a família e se tornara como seu tio – um oportunista a espera de bons negócios. Já era um adulto em sua adolescência, e continuava comparando-se com o genial Gershwin, cuja música era uma mistura de melodia judaica e dos negros nova-iorquinos. Com o passar do tempo começa a trabalhar para um advogado, relendo os processos com atenção, para analisá-los e verificar se estavam corretos. Mais vivido e amadurecido tem um confronto com seu pai, do qual se arrepende. Conhece três garotos que também adoravam Gershwin e propõe-lhes entrar em contacto com ele e conseguir suas partituras, a fim de que possam tocá-las em sua banda. Schloime continuava tenso e preocupado com a política e economia americanas. A crise se agravara e os empresários tentavam provocar confusões e quebra-quebra, para receber o valor das apólices de seguro. Ele, durante um incidente, corre para defender os operários, mas é atacado violentamente e acorda dois dias depois em um hospital. Ficara paralítico... O resultado foi um acordo de indenização em alto valor. Isso transtornaria irremediavelmente sua vida. Passaria a ser sócio de seu cunhado, vivendo em relativo luxo, com sua consciência pesada, por se julgar do outro lado. O novo escritório agora pertencia a toda a família. Schloime tinha tempo para ler jornais e livros políticos, mas em contrapartida amargava uma cadeira de rodas. Em 5 de dezembro de 1933 a Lei Seca foi abolida e foram procurados pela secretária do empresário que causara sua paralisia e ficam sabendo da venda de sua fábrica. Ele estava morto e seus herdeiros desinteressados. David aceita a oferta, mas para Schloime “Um sentimento de impotência, ou vacilação, o inibiu, deixando-o prostrado, sem palavras.” “Somente sua mulher estava ciente de seu dramático silêncio.” Passaram a negociar com Cuba charutos e bebidas. Em uma viagem à Cuba, Laibl conhece a graciosa Reisel, por quem se apaixona e casa. As famílias tornam-se amigas e ficam sabendo da triste história dos judeus que ficaram em Cuba, sob Fulgêncio Batista. O pobre Schloime, que luta contra sua consciência, encontra apoio em sua mulher. Circunstâncias de brigas de gangues fazem com que assassinem quase toda a família de Laibl, seu pai, seu tio, e mais duas pessoas. Estavam em uma América sem lei e sem proteção, dos anos da década de 1930. Ele se sente frustrado por não vingar a morte do pai e vai morar com sua jovem esposa em New Jersey. Mais uma fatalidade aguarda nosso herói: sua mulher morre de câncer no seio, deixando-lhe uma apólice muito alta, para que ele prossiga sua vida. Com o tempo, resolve fazer uma viagem de navio, com o intuito de conhecer novos países e novas culturas. Embarca em um navio que iria para o Caribe e América do Sul. Lá conhece Rachel, uma jovem inteligente e astuta, divorciada, que se tornaria sua amiga e depois namorada. A viagem duraria três meses, tempo suficiente para reflexão, estudo, e conhecimento sobre esta jovem, que era uma feminista e lutava pelos direitos da mulher. Ela era filha do capitão do navio e durante a viagem, com turbulência e percalços, Rachel vai explicando-lhe a história e costumes desses povos caribenhos e latinos. Ele observava todos os atos do comandante e tentava gravá-los em sua mente. Era um homem justo e pragmático. Rachel, sabendo de seu problema de identificação com o tio ou com o pai, sugere que ele ponha no papel seus sentimentos, que isso o ajudaria. Os jovens percebem que devem apoiar-se para enfrentar suas dificuldades. A embarcação ruma para o Caribe, depois Honduras e Nicarágua e América do Sul. “Deslizando suavemente, o navio entrou na placidez do Rio da Prata.” Laibl, depois de muito tempo no mar, em terra perde o navio e terá que continuar a viagem sozinho até Santos. Em um navio brasileiro segue viagem. Zarparam de Porto Alegre. Conversas sobre política são trocadas. “A velocidade do navio foi reduzida ao mínimo. Estavam chegando ao porto de Santos...” Laibl coloca um dinheiro, em um envelope, para Jacob, que lhe fora tão honesto e o ajudara, durante essa viagem. “Rachel e sua mãe viram-no no caís e gritaram seu nome..” A embarcação ficou mais dois dias em Santos. Rachel lera os escritos de Laibl e gostara deles. Prosseguem para o Rio de Janeiro. Laibl teme estar sendo perseguido e só consegue sentir medo! Ele gostava cada vez mais da jovem. A embarcação agora chega a Recife. Durante cento e cinco dias navegaram pelo mar, e agora circundavam a Estátua da Liberdade em direção ao cais. Rachel encontra, no desembarque, com seu ex-marido, mas não quer mais nada com ele. Pouco depois recebe um bilhete de sua ex-sogra dizendo que ele se matara por sua indiferença. Ela fica totalmente arrasada, mas lendo o diário de Laibl encontra algum conforto e o seu centro volta a equilibrá-la. Laibl, finalmente, chega e o casal vai direto para a Broadway, lugar predileto de seu amado, para jantarem sozinhos. “Felizes para sempre?... Talvez... Mas oniricamente felizes enquanto pudessem navegar a vida em busca de rumos.”

UMA LOJA IMACULADA

O adjetivo do título refere-se, literalmente, a conotação de sem mancha ou pecado. Essa novela gira em torno de um judeu polonês, Moisés, e sua família. Morava no bairro do Bom Retiro e gostava de ficar sentado nos bancos do Jardim da Luz, rememorando seus dias de juventude passados em Varsóvia. O Tietê daqueles anos 30 parecia-se com o Rio Vístula, na Polônia. Era um homem saudosista. Possuía uma lojinha, onde vendia de perfumes baratos a roupas de cama e mesa, e com ela formara seus três filhos em cursos universitários. Seu lema era: “Compro tudo à vista e só vendo à vista.” Gostava de rememorar os velhos costumes judaicos. Pensava em sua Varsóvia e na história da perseguição de seu povo, pois “tanto os judeus como poloneses eram vítimas dos caprichos dos czares e dos pseudogovernantes.” Ele e sua mulher, Fany, almoçavam na loja, comendo o que ela preparava em casa. Com o tempo deixa-lhe os cuidados do comércio e o negócio transforma-se em uma distração para o velho casal. Com o passar dos anos, a loja foi diminuindo, devido ao aparecimento de grandes redes, restando somente uma porta. Moisés lembrava-se da democracia proposta na Polônia, que não vingara. Era um homem culto, pois havia freqüentado uma escola laica e pudera estudar; já Fany não. Os poloneses haviam tentado resgatar uma fraca democracia com ucranianos, bielorrussos e alemães. Porém tudo acabou com um golpe de Estado de Pilsudsky, que apesar de todos os horrores cometidos, antes de morrer havia homologado uma constituição, em 1935, na qual considerava a Polônia “patrimônio de todos os cidadãos.” Após sua morte o anti-semitismo continuara existindo ainda em piores condições. O casal encontrava-se bastante idoso, contudo cultivavam uma rotina de trabalho. Um dia chega a eles uma senhora chamada Lolita, a qual mantinha um bordel, para horror da velha senhora. Lolita gostaria de fazer negócio com eles através de suas “meninas”, comprando calcinhas atraentes por um baixo custo. Relutando muito, concordam e a lojinha prospera. Isaac, seu filho economista que fabricava as calcinhas, em uma ocasião, o procura pedindo que esconda documentos e livros de um amigo comunista que precisava fugir do Brasil. Seu pai novamente reluta com uma situação ilegal, mas concorda, pensando em fazer uma boa ação. Para despistar esse material, seu filho o mistura com livros e revistas pornográficos. Curioso, uma feita, Moisés resolve abrir um dos pacotes e fica transtornado com o filho, mais ainda por saber que as revistas pertenciam ao neto. Isaac não sabia ser pai. Nesse ínterim, Lolita volta e encomenda mais duas mil calcinhas e garante que gostaria de comprar a lojinha. Moises está feliz, porque as coisas correm bem e pensa que Deus perdoou seus pecados. Mas como todo bom judeu precisa de alguma culpa, decidindo procurar um rabino que o ajude com sua consciência e angústia. O movimento crescera tanto, que fiscais, que antes não entravam no recinto, decidem analisar os livros fiscais. Vários livros empoeirados estavam na ponta do balcão e pensando tratar-se dos documentos desejados, querem examiná-los, pois material pornográfico aquilo não poderia ser, riram os dois. “Moisés temia que abrissem um dos pacotes com material comprometedor.” Quando Fany abre um deles, depara-se com fotos obscenas, e grita desesperadamente. Desta vez estavam salvos, mas deveriam pagar uma autuação e, além disso, a loja seria lacrada. Seu filho decide subornar os fiscais que bem conhecia. Entretanto Moisés passa mal e é levado ao Hospital. Moisés morre... Mas antes pedira a sua mulher que cuidasse do neto e das netas para que crescessem como verdadeiros judeus honrados. “Lolita comprou o estoque, o ponto e o prédio, tudo à vista, e ainda se comprometeu a pôr em ordem a parte fiscal.” Isaac ao ouvir falar em livros fica desesperado, quer ele mesmo pegá-los. Mas ficamos sabendo que Lolita tem um irmão comunista, que mora na Alemanha Oriental. Ele não gosta dela por ter um negócio ilícito, que a fazia enriquecer com pouco esforço e muita astúcia. Assim mesmo ela o ajudava através de sua mãe, que morava em uma chácara no sul de Minas. Atraindo a confiança de Isaac, compromete-se a levar o material subversivo para a casa da mãe. O assunto, agora, gira em torno do contraditório no comportamento humano. Finalmente ela declara: “portanto, o senhor confirma que agimos dentro de certas circunstâncias, nos limites de uma realidade que se impõe, e assim podemos justificar nossos atos e amainar nossa consciência.” Era uma verdade. Apesar disso, o economista não sossega e não consegue dormir pensando que poderia ser denunciado e preso. O tempo mostra que estava correto em confiar em Lolita. O desfecho inesperado da estória mostra bem o humor e o sentimento judaicos.


Carlos Frydman nasceu em Varsóvia, Polônia, em 15 de novembro de 1924. Foi membro do Partido Comunista de 1942 a 1958. Viajou pela Europa, morou em exílio e escreveu poesias para jornais. Publicou Os Caminhos da Memória e Sintonia. É conhecido também pela sua humanidade e amor às pessoas.
[1]Eu sou Golem. 1- Ser artificial mítico ligado ao Judaísmo e à Cabala. Como Adão todos os golems são provenientes da argila, lama. 2- Pessoa santa.
[2] Tratado filosófico-religioso hebraico.
[3] Desastrado, sem sorte.
[4] Bedel da sinagoga.