quarta-feira, 20 de maio de 2009

O RIO E SEU SEGREDO – A pianista que desafiou Mao





DE ZHU XIAO-MEI


Zhu Xiao-Mei, nasceu em 1949 em Xangai. Esse ano fora difícil e centenas de pessoas morreram de frio e fome. A guerra civil (Partido Comunista versus Kuomintang) havia desorganizado o país. Ela nascera em uma família abastada, do lado materno e paterno, mas agora estavam sem quase nada. Um piano havia sido salvo. A pequena Xiao-Mei é incentivada pela mãe a tocá-lo, pois possuía o dom para essa arte. Moravam em Pequim, em uma comunidade muito pobre, pois seu pai que era médico na tradicional cultura chinesa, de plantas e ervas, estava desempregado e tivera que mudar-se para perto da irmã. O objetivo era conseguir um trabalho qualquer, o que o deixava deprimido e violento. Sua mãe, pianista, vai lecionar em uma escola. Agora ambos precisavam trabalhar. Mais ainda sua mãe, que se tornara a provedora da casa e protetora das cinco filhas. Xiao-Mei vai para um Conservatório de Música, onde conhece seu primeiro mestre, um jovem que acredita nela e lhe ensina uma ampla técnica. Mao obriga as crianças e jovens do país “a se reeducarem”, ou seja, a denunciarem seus amigos, pais e parentes e retrocederem intelectualmente, nivelando-os ao mais simples grau do campesinato. Devido a diversas ocorrências, a agora adolescente Xiao-Mei, que aprendera a amar os principais compositores e escritores do Ocidente, é persuadida a rever sua posição e admirar somente o que fosse genuinamente comunista e pueril. Assim teriam uma China forte e para todos. Xiao-Mei passa a envergonhar-se de sua origem burguesa e a duvidar de seus pais. Mao exige que toda a educação seja interrompida e somente a Revolução desenvolvida e divulgada por toda China. Professores são açoitados e mortos diante de alunos, sob a acusação de elitização. Filhos são obrigados a denunciar amigos e familiares e os estudos relegados ao nada. Todo material intelectual é queimado ou destruído na frente dos estudantes. A avó de Xiao-Mei é obrigada a voltar para Xangai, assim como milhares de outras pessoas idosas. A morte e assassinato são aceitos para a melhora do país. A jovem Xiao-Mei nos anos de 1967 e 68 está convencida da veracidade dessas atitudes; ela que era sensível e educada fora totalmente “reeducada.” O mais irônico é que o lugar onde Mao havia nascido se transformara em um “Santuário” com direito a “imensas peregrinações” de pessoas fanatizadas por ele. Algum tempo depois, ele decide que o ensino deveria ser retomado, mas não há material didático no Conservatório, nas universidades e nas escolas. Assim, peças com influência albanesa são escritas, influenciadas pela poderosa senhora Mao. Sem que saibam, longos trechos de música clássica ocidental são transcritos para esses trabalhos eminentemente chineses! Xiao-Mei volta a seu piano dando concertos em diversos lugares. Em 1968, os sete membros de sua família são separados pela vasta China, por ordem de Mao, que inicia uma nova política de mandar para o campo os citadinos. Dezessete milhões de chineses foram exilados. Suas irmãs partem para diversos lugares longínquos do continente. Depois seu pai, condenado segue para um campo de trabalhos forçados e ela própria vai para a Mongólia - Zhangjiako, junto com diversos estudantes de arte, da qual a China sempre fora tão rica. Lá encontra o fim de sua saúde pelo excesso de trabalho e total falta de salubridade do ambiente. Enviada para um imundo hospital, consegue se recuperar; já está com quase 20 anos, nossa pequena revolucionária, que perdera dez quilos. Foram transferidos para Qingshuire, onde a vida é ainda pior. Sua mãe também partira e a avó morrera sozinha. A temperatura é glacial e o tédio, o trabalho pesado nos campos e a falta de respectiva reduzem a vida da jovem à total desesperança. Três anos já se passaram. Depois de fugir para Pequim, a fim de ver sua mãe e ser obrigada a voltar, foi transferida para o quarto campo de trabalho forçado. Lá ela está obcecada pela música, pois voltara a tocar. Quer trazer seu piano de Pequim. Com grande dificuldade e perigo sua mãe consegue enviar, por trem, o piano a Zhangjiako, para alegria dos jovens músicos. Além disso, conseguem outros instrumentos e algumas partituras que são copiadas por Xiao-Mei. “... o campo e suas imediações ressoam a música de Bach, Chopin e Rachmaninoff.” O primeiro concerto é realizado e a emoção dos ouvintes é incontida: não podiam mais ser privados de sua profissão. A situação tornara-se intolerável. O campo estava repleto de jovens artistas sensíveis e famosos e todos eram tolhidos de sua profissão, nas mais variadas áreas da arte. Entretanto, entre si iniciavam-se em novas áreas de conhecimento artístico. Em 1973 a matriarca da família é operada de câncer e Xiao-Mei foge para cuidá-la. Nesse tempo a jovem consegue assistir, clandestinamente, a uma apresentação da Sinfônica de Filadélfia em Pequim, e, pela primeira vez, ouve o som de uma orquestra! Xiao-Mei resolve, voluntariamente, voltar ao campo temendo maiores complicações. Finalmente, em 1974, encontram uma locação para ela dar aulas de piano em uma remota cidade da China. Sua mãe pede que recuse. Agora ela tem liberdade, mas não possui mais nada. Mestre Pan e Xiao-Mei reencontram-se e ela passa a ter aulas com ele, pois desenvolvera, nesses anos todos, um toque mecânico, muito alto e rápido. Seu querido piano também retornara... Mei consegue dar um concerto na sala do Balé de Pequim, totalmente lotada. Era o primeiro concerto desde a revolução Cultural. Nesse mesmo ano morre Mao Tse-Tung. Em 1977 as coisas começam a mudar. O Conservatório reabre suas portas, mas ela é recusada por ter passado da idade limite! Após uma greve branca os estudantes mais velhos são aceitos. Ela teria que recuperar dez anos, em três meses de preparação, para a audição. Xiao-Mei toca tão maravilhosamente bem que os espectadores do balcão a aplaudem, apesar da proibição de qualquer manifestação. Para orgulho de seus pais, uma filha havia chegado ao ensino superior chinês. Com mais abertura política, a jovem conhece diversos intelectuais atuantes, mas seu sonho é partir do país. O auge da influência americana chega à China em 1979, com o violinista Isaac Stern, e ao ouvi-lo Xiao-Mei decide morar nos Estados Unidos. Como, ainda não sabe. Insistentemente consegue, depois de vários obstáculos quase intransponíveis, partir para Hong-Kong e depois, quem sabe, América. Seguindo o conselho de seu pai não voltará mais à China. Isso ocorreu em 1° de fevereiro de 1980, quando tinha 31 anos. Ela morou com primos em Hong-Kong por apenas dois meses, para comprar um bilhete aéreo para a Califórnia. Seu sonho estava começando a se realizar. Voando para o Ocidente, no avião, percebe que sequer ouvira falar de Lao Tse, um dos maiores filósofos do mundo. Vivera quinhentos anos antes de Cristo, quando “compreendeu então que a renúncia às vaidades era a via da sabedoria e decidiu se exilar.” Ela sendo chinesa não sabia disso! Uma professora americana que sentara ao seu lado no avião lhe contara. Estivera isolada da própria pátria pela Revolução Cultural de Mao. Trabalhando como faxineira em uma mansão no novo país, pois não sabia falar inglês, e desesperada pela falta que a música lhe fazia é salva por um telefonema de Like, seu amigo chinês, que lhe propõe estudar no Conservatório de Boston. Além de ser aceita depois de seu concerto, recebe uma bolsa de estudos. Ela se inscreve com um dos melhores professores, Gabriel Chodos, mas a prova escrita é devolvida em branco, pois não entendera uma palavra sequer. Em Boston também não é fácil, pois não dominando o idioma nem os hábitos ocidentais, não consegue sequer chegar a casa. Sendo muito competente e tenaz, consegue que Gabriel Chodos a ouça tocar e passam a trabalhar juntos, apesar de sua música não soar ocidental e sentimental como ele gostaria. Ouvindo um conserto de seu professor recebe uma lição: “Mostrar a simplicidade do que parece complexo e a complexidade do que parece simples”. Seu método de ensino é duríssimo e faz com que ela leia a partitura com lupa. Quer que levante a mão do teclado, ao final de cada frase musical. Isso constituía um enorme esforço para a jovem. Depois de Bach e Schumann vem Beethoven e com ele o teste final – teria ela alguma coisa a dizer enquanto tocava? Sim, agora estuda Schumann e “uma hora de aula para uma linha de música!” Xiao-Mei, com 31 anos, vai se tornando ainda mais firme e amadurecida do que já o era, vencendo todos os obstáculos que se apresentassem, com grande sabedoria e comedimento. Ela muda-se para a casa de uma grande flautista, Dominique. Entretanto lá não se come, pois Dominique é extremamente frugal e excêntrica. Ganhando poucos dólares para cozinhar para seus convidados conhece um rico casal, que ao ouvir sua história, resolvem ajudá-la a construir uma escola na China. Com um salário tão irrisório é obrigada a procurar outro emprego. Presentemente, é garçonete de um restaurante chinês, em um dos piores bairros da cidade, Red Line, tornando-se impossível sua estada nesse lugar, freqüentado por prostitutas, drogados e bêbados. Depois foi ser “lanterninha” na Orquestra Sinfônica de Boston. Dominique e seu professor não suportavam mais seu péssimo inglês e a flautista lhe oferece um curso intensivo em Nova Inglaterra. Agora em Vermon ouve o famoso pianista Rudolf Serkin, legendário por suas interpretações, apaixonando-se por sua técnica. De tanto ouvi-lo em discos e rádios, volta com uma grande mudança em seu estilo e técnica para melhor. Sua ousadia é, comprovadamente, sua melhor conselheira. Formando-se no conservatório, resolve dar-se um presente... Sua primeira boneca! Trabalha como professora estagiária em Brattleboro, onde dera um concerto e fora muito elogiada. Dar aulas de piano é insuficiente como salário e ela está sempre em busca de novos cargos e se muda, em um ano, trinta e cinco vezes! Xiao-Mei é informada que precisavam de uma professora titular, na escola de música de Brattleboro. Feliz, apresenta-se no serviço de imigração para obter o green-card, quando é informada que seu visto expiraria em 3 dias e precisaria voltar para a China. Desolada só lhe resta uma esperança: casar-se com um americano. Seus amigos Tom e Greg oferecem-se para casar-se com ela, um casamento branco. Ela fica com Tom, que tem um sobrenome que consegue pronunciar. Xiao-Mei encontrava-se infeliz por ter que mentir às autoridades americanas e sente-se muito só: sem sua família para ajudá-la, apesar de seus maravilhosos companheiros. Nesse ínterim, a jovem recebe uma carta tocante de seu pai, o qual de intransigente e por vezes brutal, tornara-se pacífico e feliz, através dos estudos dos grandes mestres chineses. “Praticar sem parar, sem procurar, sem forçar, e pouco a pouco a compreensão da vida e das coisas começa a surgir sem que nos percebamos: é esta a filosofia chinesa, que pode ser sentida, sem necessariamente ser explicada.” Os chineses são mais intuitivos que os ocidentais, que procuram a razão. Gabriel Chodos a fez trabalhar muitíssimo as frases musicais. Isso vinha de encontro à sua filosofia de vida. Xiao-Mei estava meditando e lendo Lao Tse e isso trazia-lhe paz de espírito e melhorava sua técnica. Desse modo aprimorou ao máximo seu dom, sem pensar em ser recompensada financeiramente por isso. Era puro prazer e deleite. A pianista sentia uma forte atração por Paris, pois fora criada em Xangai, no bairro francês, e sua mãe sempre lhe falava sobre o Louvre e suas obras. Além disso, havia comprado com muito sacrifício o livro de Rodin para se inspirar. Sentindo-se um peso para Tom e Greg, resoluta, muda-se para Paris apesar de ter sido fortemente desaconselhada. Sua amiga Xiaoquin morava na cidade e poderia recebê-la. A jovem sente que a França e a China são dois países, de certa maneira, complementares. O ponto crucial dessa decisão foi uma belíssima carta, que Victor Hugo escrevera em resposta a uma pergunta do capitão Butler, sobre o saque do Palácio de Verão da China pelos franceses. Ele era totalmente contra e a magnitude dessa carta a convenceu. Ela voa para Paris em dezembro de 1984. Teria de recomeçar tudo de novo: emprego, aprendizado da língua, vistos, adaptação. Sua amiga consegue que vá conhecer o famoso pianista Marian Rybicki. Com apenas 400 francos, o preço de uma hora de aula, vai a sua casa. Para seu desespero ele só lhe faz perguntas e o tempo vai passando. Sem desgrudar os olhos do relógio passa a tocar Davidsbündlertänze, quando a hora chega ao fim e ela interrompe bruscamente a música! Marian iria lembra-se do episódio para sempre, pois se tornaria seu professor sem cobrar, apenas por seu talento! Morava, agora, em um pequeno quarto, mas seu objetivo aos trinta e seis anos era ser reconhecida. Todavia Paris lhe é muito dura. Seu visto se expirara e ela precisa voltar para Boston! Viver lá por mais algum tempo e conseguir o green card, para morar na França. Maravilhosa Xiao-Mei! Assim é feito. Nessa cidade estuda as Variações Goldberg de Bach à exaustão. Encontrara-se nessa peça, sua maneira de tocar piano tornara-se a cada instante “mais natural.” As pessoas queriam saber de onde vinha tanta energia e disciplina. Ela não sabe o que lhes responder. Ela se admira “ao encontrar nas Golderg os elementos mais essenciais” da sua cultura chinesa. Passado o tempo estipulado, ela volta à Paris com seu passaporte americano e sua amiga, senhora Aalam, recebe-a muito comovida. Com a ajuda dessa mulher terá sua própria casa, um estúdio pequeno, mas só seu. Em breve chegaria um piano de calda, que comprara, a fim de dar aulas particulares e exercitar-se. Toda a força e competência dessa jovem foi logo reconhecida pelas pessoas que a cercavam. Xiao-Mei tem o raro dom de aceitar a ajuda que lhe é oferecida, com elegância e graça. Dará um concerto na linda igreja parisiense Saint-Julien-le-Pauvre. Está segura de si. A igreja está tão lotada, que as pessoas passam a se sentar no chão. Seu sucesso viera aos 40 anos! Um segundo concerto aconteceu, ela gravou um disco e as críticas no Le Monde a seu respeito foram fenomenais. Começou a ensinar no Conservatório de Paris. Chegara a hora de voltar para a China. Nas férias de Natal ela regressa e o avião pousa no aeroporto de Pequim. Todos a esperavam no aeroporto, exceto sua mãe, que adoecera de emoção. Seus pais estão mais envelhecidos e mais pobres, resumidos a um apartamento de vinte e cinco metros quadrados. A acolhida foi maravilhosa, mas Mei sentira remorso por não ter podido ajudá-los. Sua mãe estava famosa devido a uma canção que escrevera há tempos e estava tendo aulas de pintura, mas modesta, quem conta as novidades é seu pai. Xiao-Mei compra-lhes eletrodomésticos para auxiliá-los nos serviços domésticos. Seu querido piano, apesar da pobreza, havia sido afinado e não vendido. A pianista toca Devaneios de Schumann, como sua mãe o fizera, quando ela tinha apenas três anos. Após doze anos Mei volta ao Conservatório, que está muito maior, e conversa demoradamente com mestre Pan. Será a última vez que se encontraram, pois se juntaria aos filhos em Singapura. De volta à Paris seu sucesso cresce, contudo ela se sente assustada e desconfortável com tantas viagens e concertos pelo mundo. É o preço que teria a pagar. Ao apresentar um concerto no Teatro de la Ville, para uma multidão, adoece antes e depois dele, como sua mãe. Precisava de coragem e aconselhamento para voltar a tocar, já que se tornara uma das mais brilhantes pianistas de Paris. Uma das suas maiores emoções foi o concerto de Leipzig, onde Bach trabalhou de 1723 até sua morte. Aí foi ovacionada! Em sua peregrinação para conhecer a igreja onde Bach está enterrado, sentiu-se completamente realizada. Não queria mais nada. “A Revolução Cultural me fez em pedaços” reflete certo dia e mais ainda “Só a fé na música me dá forças para ir até o fim.” Em 2003, descobre que está com câncer. Ela desmorona. Nesses instantes de dor, gostaria de tocar tudo o que ainda não havia tocado. Está resolvida a esperar a morte sem fazer nada, mas é convencida pelos amigos a se tratar e se recuperar. Mei escreve: “Mais uma vez a música salvou minha vida.” Sua amarga experiência na adolescência faz com que sinta prazer em tocar para idosos, doentes e prisioneiros. Em 2002, obtendo a nacionalidade francesa convida seus pais e família para visitá-la. Sua mãe, que está com Alzheimer, e sua irmã aceitam o convite. Passeiam pelos museus de Paris e pelo Louvre, que sua mãe tanto amava. Comove-se ao vislumbrar as obras, mas logo já se esquecia de tudo. O sonho de sua mãe havia se realizado, mas não tinha consciência do fato! Em 2006, Xiao-Mei sente que chegara a hora de visitar seus companheiros de cativeiro. Mais de vinte anos haviam se transcorrido. Um mora em Tóquio e outro está no Canadá, onde é um famoso compositor. Retornando à Pequim seu pai quer visitar o túmulo de seu melhor amigo, em um lugar bastante distante. Depois de se recolher por quase duas horas no local, pede a filha para enterrá-lo lá, também, pois Lao Xue fora o único que realmente acreditara nele, naqueles anos de chumbo. Depois de rever a amiga Aizhen, chegara o momento de ir para Zhangjiako. Lá tudo havia mudado, desde a prisão até a própria cidade, que crescera e prosperara materialmente. Observa o quanto o cristianismo havia se espalhado pela China e dado esperanças a eles. Quanto a ela prefere a solidão das filosofias chinesas. Nessa última página do livro, ainda não se esquecera de seu velho sonho – criar uma escola gratuita de piano para jovens pobres. Esse seria para sempre seu ideal!

Um comentário:

Nilton disse...

Esse livro é fascinante. A história de vida de Xiao-Mei é incrível e de quebra, pode-se ter uma ótima visão do que o comunismo faz com a individualidade das pesssoas. A descrição das sessões diárias de auto-crítica e de denúncias é de arrepiar.