sábado, 9 de maio de 2009

TRILOGIA DAS BUSCAS de CARLOS FRYDMAN



Um Cabalista Excêntrico


O livro começa muito bem humorado, contando sobre um enterro, quando um homem bêbado chama a jovem falecida, que já descera à sua tumba, de Mariana. Não, ela era Marina, uma belíssima mulher invejada pelas outras e esse engano fora um prato cheio para fofocas e mal-entendidos por parte das pessoas presentes. José, um motorista de camburão para cadáveres, contou essa história para levantar o espírito de seus colegas de trabalho que adoravam piadas. José era um talento de interpretação, mas não pensava seriamente nisso. Era humano e gostava de aliviar a tensão nesses momentos tão tristes. “Com José o corriqueiro tomava um novo sabor.” “Observar e interpretar a vida através dos féretros tornara-se uma verdadeira obsessão de José”. Vivenciar a morte transformou-se no norte desse homem que já não mais a temia. “A morte em si não é um castigo. Pode ser uma libertação”, pensava ele. Essas observações eram gratificantes e, além disso, havia um lado político-social. Em dado momento, passou a ser um “aprendiz da morte e da vida”. Aos poucos ficamos sabendo que José estudara sociologia por dois anos, viúvo e pai de dois filhos, era muito alto e forte, com olhos profundos, bigode grande, dentes alvos e tinha 45 anos. Em uma ocasião teve de transportar um cadáver judeu de um hospital geriátrico para o velório judaico, que exigia determinadas normas de conduta. Era um mau dia, pois se tratava de uma sexta-feira, véspera do Shabat. O morto era magro e ossudo e já estava preparado. Entretanto, em um canto da sala havia uma bela jovem, que chamara sua atenção, chorando por estar atrasada e perder o funeral de seu amado avô. José a convence de acompanhá-lo no camburão, apesar de sua relutância inicial. Seguindo caminhos alternativos e desertos são surpreendidos por ladrões, que imaginavam ser o caixão um disfarce com muambas ilegais. Ele desce do carro, mas a jovem... desmaia. Ao abrirem a tampa do esquife, se deparam com um morto vivo que balbucia: “Ich bin Golem[1].” Estava em estado de catalepsia. Felizmente um carro de polícia passava e os ladrões fugiram deixando um pacote pesado, cheio de cadernos e livros. “O medo de José era maior em relação à moça do que ao morto falante.” José e Marta chegam ao cemitério e ela é recebida pela família. Já atrasadíssimo e assustado com o cadáver deteriorando-se, procura, no Instituto Médico Legal, seu amigo médico para saber como agir. Carlos detecta batimentos fracos, seguidos da morte verdadeira. José, aturdido, “percebeu o quanto era frágil diante de situações inusitadas. Rumou com o cadáver em busca do rabino, com seis horas de atraso. Não poderia enganá-lo, pois o “respeito pelo rabino desestimulava-o a mentir.” “Leve o morto para o Albert Einstein.” diz o homem. Seguindo para o hospital “ouviu um tilintar debaixo do banco lateral.” Era o celular de Marta e havia outros objetos pessoais por todo o chão. Chegando ao seu destino “um choro ecoou, uníssono, pelo pátio”, mas com paciência “o rabino consegui arrefecer os ânimos.” O primogênito ajudou-o a abrir o caixão e pegar suas coisas pessoais. No fundo do bolso, havia uma caderneta com informações para guardarem seus manuscritos e diários, dirigidas ao rabino. Depois de algum tempo, já acalmado pelas palavras do rabino, entrega o pacote, amarrado com uma corda fina. Eram vinte e um cadernos, que formavam um diário. Pretendendo “dar continuidade à milenar vivência do povo judeu”. O defunto escrevera o texto em iídiche e as datas em hebraico. Fazendo tradução simultânea, o rabino pôs-se a lê-lo para José.
29 de fevereiro de 1966
Ele fora um homem viúvo e, aos 75 anos, largado pela família em um asilo judaico. Seu primeiro ato ao chegar é olhar-se no espelho, com sua face muito mais envelhecida do que sua idade real e desejar vingança. Sim, vingança contra todos que contribuíram para esse desenlace, pois sentia que ainda possuía “vitalidade”. Comprara muitos cadernos onde escreveria sua vida desgraçada, pois tempo é o que não lhe faltaria. Queria, obstinadamente, “ser um Golem que aspira vingança, que perturba as mentes malévolas...” Queria uma metamorfose. José quer saber o que é um Golem e Cabala[2] e o rabino explica.
1°de março – segundo dia
O velho judeu percebe que as pessoas, ali, estavam sem objetivos a não ser esperar a morte. Contudo um senhor confessa-lhe que a sabedoria era importante e esquecer o passado também. Titubeando quanto à sua própria determinação, resolve seguir em frente. José interrompe novamente a leitura e ambos descobrem que as datas agora estão nas seqüências dos dias que o levariam até se tornar um Golem e depois morrer. Tornara-se um cabalista no sétimo dia e sentia saudades de sua mulher. Gostaria de compartilhar seu misticismo com ela. Desejava “através da Cabala, compreender, filosoficamente, a relação entre Deus e a criação...” Queria ser o oposto do que fora: “um submisso cordato.” O Rabino observa que a obsessão de revanche daquele homem era-lhe muito prejudicial. “A consciência é um empecilho à loucura” escreve. Faz questão de lembrar que lera todas as peças de Shakespeare e importantes obras judaicas. O Rabino está extasiado com sua obstinação e desejo de sustentar seu ódio. Ele se surpreende como o velho se apoderara do Cabalismo, que outrora tentou acabar com o misticismo religioso. Deus estava mais distante dele, sem que percebesse. Agora o autor nos conta que ele vendia confecções, dominava Shakespeare e havia vivido na Inglaterra do pós-guerra. Sabemos também como ele conseguira a solidariedade de sua família, quando caiu em um conto do vigário, na Bolívia, e eles o apoiaram sem censurá-lo. (Afinal sua vida não era tão má assim). Ah! Seu nome era Moishe. Logo depois leva outra rasteira de um ex-gerente de banco. Sendo um crédulo sua mulher acaba dizendo: “Moishe, você é um schlemazel.[3]” E em seguida “Moishe, você é um homem bom demais... Ele pensa que “são infinitos os mundos que habitam este asilo”, mas logo volta à sua meta de transformar-se em um Golem e se isolar. Desprezava as visitas dos filhos, por serem muito formais, mas ele também o era - formal e frio. Descreve as rasteiras continuavam em sua vida por sua extrema honestidade e que seu “povo se caracterizava por uma ética milenar”. Em nome disso, diversas vezes ele ficara “quase rico ou quase remediado.” Agora sabemos, através de um amigo comunista de seu filho, que o primogênito era um homem honrado e formado pela Sorbonne e PhD em História e Filosofia. (Nada mal hein, Sr. Moishe). Esse jovem senhor, Aloísio, deixa-o embaraçado, porquanto tivera muito preconceito contra ele quando companheiro de seu filho, pois era um esquerdista ferrenho. Descobrindo que na realidade era judeu e seu nome real Mordechai, passam a estabelecer uma vigorosa amizade muito valiosa para os dois. Percebe que certos preceitos do marxismo e da religião não estavam tão desconectados quanto pensara. Eles discutem ciência e religião e o velho judeu explica-lhe que “a Cabala engloba além de um objetivo exterior, a aptidão da alma para conceber idéias sobrenaturais.” Esses encontros eram regados a chá, geléia e biscoitos que o rapaz sempre trazia. Através de explicações lúcidas sobre o misticismo e religião e também o significado de um Golem, Moishe percebe que jamais chegariam a uma conclusão, relativa à filosofia ou religião, pois o rapaz tinha sempre um contra-argumento perspicaz. Com isso ficamos sabendo sobre a Tora, ensinamentos judaicos e lendas antigas. Moishe, ansiosamente, conta-lhe que deseja tornar-se um Golem, para surpresa de Mordechai. Acrescenta ainda que queria “ser um Golem que me leve a resgatar a vida que me roubaram!” Perplexo, o rapaz tenta explicar-lhe que a metamorfose não o mudará e não mudará seus agressores e, por que não, transformar-se em um Justo? Aconselha-o também a escrever seus enormes conhecimentos a fim de que fossem úteis à outras gerações e pessoas. Contudo o velho se ofende e acha que ele não o considera Justo. Mordechai lembrava-se da atmosfera fria e corrida de sua casa, mas tinha certeza de que seus filhos o compreenderiam, principalmente Marcos que “é uma belíssima criatura.” Contudo ele entendia seu companheiro de confidências. Moishe, entretanto, sentiu-se “mortalmente ferido com aquelas palavras duras... desse verdadeiro amigo.” Mas talvez uma saída estivesse mesmo no amor e justiça. Porém, no dia seguinte, pensou “Não pretendo abandonar tão facilmente meu direito de revide contra esse mundo hostil.” Moishe, finalmente, conversa com o Rabino, homem atencioso e paciente, mas despreza o schames[4], que mantinha um sorriso zombeteiro no rosto. Moishe escreve um belíssimo poema, como uma prece, que não é aprovado pelo Rabino que lê suas memórias, afirmando: “Pobre homem, tornou-se uma alma penada ainda em vida”. Para consolar o velho judeu, o rabino do asilo procura-o e quer saber como fora levado a estudar a Cabala. No entanto, quando soube que era para fazer justiça através dela, achou que aquilo “beirava a heresia” e pior ainda, ele queria também vingança. O bedel deveria estudar junto com ele os livros sagrados, pois era um homem estudioso e tranqüilo. Isso arrasou nosso pobre herói, que o detestava. Um dia encontra-se com o idoso bedel e irritado com seu sorriso e fala, empurra-o com força e sai, deixando-o caído, gritando de dor, com duas fraturas na perna! Mais tarde, ouve baterem na porta com força. Era o Rabino que o avisa que o pobre schames havia sido enviado ao hospital para ser operado. Desse modo, apavorado é conduzido à enfermaria por um médico, após ter sido sedado. Acordou em um cubículo, em uma cama de ferro. Alarmado aciona a campainha e é atendido pela bela doutora Vanderlea. Estava em uma casa de saúde mental, porém não era considerado louco; só tivera um rompante e precisaria ficar lá por mais dois dias. Assustado, pede para que o filho Marcos traga seus cadernos, seu “precioso diário.” A visita de todos os filhos amorosos fora um alento e tanto. “Sentiu-se salvo.” Visitado pelo primogênito e Mordechai, ouve boas notícias, porém quando este sai, seu filho cautelosamente conta-lhe que o bedel havia morrido no hospital com infecção generalizada! Não poderia mais voltar ao Lar dos Velhos. Chorou copiosamente e acordou só. Retomou a escrita de seu diário, com uma grande tristeza, mas isso seria uma maneira de continuar a viver e mostrar sua indignidade. A médica pedira-lhe para não perder seu humor típico dos judeus que ela tanto apreciava. Entretanto talvez não merecesse mais qualquer perdão. O Rabino condói-se com seu estado e José acredita que ele salvou sua vida e a da jovem que o acompanhava no camburão. Depois de todas as cerimônias judaicas para o sepultamento ele é enterrado pelos filhos e presentes. (Nesses capítulos temos descrições sobre o enterro, as preces e tradições hebraicas). Mordechai deveria encontrar-se com a família, pois o diário mostrara que ele fora um personagem importante para Moishe. O encontro entre o Rabino e Mordechai acontece com a presença de José, que muito atento, aprende com eles que os excessos na religiosidade se dão por questões políticas e econômicas, a fim de camuflar os verdadeiros motivos das guerras e crises. Nesse momento chega uma carta do ex-bedel para o Rabino Levy. Nela ele faz uma análise correta das condições que levaram Moishe a aquele estado de quase transe. Observa sua religiosidade, seus estudos, seu caráter e conclui que ele deveria ser perdoado, pois era “um homem bom e sincero”. No final assinala: “Vamos tirar esse homem do abismo.” Nesse ínterim José e Marta passam a se encontrar e “o amor se enraizou nas entranhas e nas almas.” Após o primeiro encontro entre eles em um motel, o coração de José não resiste a tanta felicidade... e ele morre. Marta ficara grávida de José e tornara-se amiga de sua irmã. Depois de conhecer sua família passa a ser a mãe de seus três filhos. Um interessante epílogo fecha a estória.




BUSCAS

“Desde quando despertou, Laibl vacilou entre o eu de seu pai e o eu de seu tio”. Ele era, agora, um adolescente de 13 anos, muito sagaz, que vivia entre as influências de seu pai, Schloime, e o irmão de sua mãe, David. Estamos nos estados Unidos nos fins da década de 1920. Schloime é um líder sindicalista comunista, que luta contra a repressão do governo e da sociedade americana contra os imigrantes estrangeiros. David é o típico judeu inteligente, que vê em todas as ocasiões uma oportunidade para fazer negócios, prezando muito sua liberdade e seu desejo de ser autônomo. O país está perto da depressão de 1929 e o garoto, assustado, está dividido entre os ideais de Schloime e David. “Ele sabia que seu pai, sendo um líder sindical, estava envolvido até a medula” se uma greve geral sobreviesse.
“A dicotomia sentimental de Laibl em relação ao pai e ao tio tornava-se um abismo de sofreguidão.” Vivendo no Lower East Side de Manhattan e sendo um bairro onde diversas comunidades estrangeiras preservavam seus hábitos, não existia rotina. “Pouco se podia programar. Mas tudo impunha ação.” Esses fatos fizeram com que o jovem Laibl fosse atraído para a rua. Laibl cresce e se apaixona por música acompanhando a carreira de um amigo, George Gershwin, que agora se tornara muito conhecido. Mas ele se interessa também por literatura e teatro. Com quinze anos resolve parar de estudar e provoca uma prontidão em sua casa, pois consideravam isso inaceitável – um homem sem diploma superior. Ele praticamente sustenta a família e se tornara como seu tio – um oportunista a espera de bons negócios. Já era um adulto em sua adolescência, e continuava comparando-se com o genial Gershwin, cuja música era uma mistura de melodia judaica e dos negros nova-iorquinos. Com o passar do tempo começa a trabalhar para um advogado, relendo os processos com atenção, para analisá-los e verificar se estavam corretos. Mais vivido e amadurecido tem um confronto com seu pai, do qual se arrepende. Conhece três garotos que também adoravam Gershwin e propõe-lhes entrar em contacto com ele e conseguir suas partituras, a fim de que possam tocá-las em sua banda. Schloime continuava tenso e preocupado com a política e economia americanas. A crise se agravara e os empresários tentavam provocar confusões e quebra-quebra, para receber o valor das apólices de seguro. Ele, durante um incidente, corre para defender os operários, mas é atacado violentamente e acorda dois dias depois em um hospital. Ficara paralítico... O resultado foi um acordo de indenização em alto valor. Isso transtornaria irremediavelmente sua vida. Passaria a ser sócio de seu cunhado, vivendo em relativo luxo, com sua consciência pesada, por se julgar do outro lado. O novo escritório agora pertencia a toda a família. Schloime tinha tempo para ler jornais e livros políticos, mas em contrapartida amargava uma cadeira de rodas. Em 5 de dezembro de 1933 a Lei Seca foi abolida e foram procurados pela secretária do empresário que causara sua paralisia e ficam sabendo da venda de sua fábrica. Ele estava morto e seus herdeiros desinteressados. David aceita a oferta, mas para Schloime “Um sentimento de impotência, ou vacilação, o inibiu, deixando-o prostrado, sem palavras.” “Somente sua mulher estava ciente de seu dramático silêncio.” Passaram a negociar com Cuba charutos e bebidas. Em uma viagem à Cuba, Laibl conhece a graciosa Reisel, por quem se apaixona e casa. As famílias tornam-se amigas e ficam sabendo da triste história dos judeus que ficaram em Cuba, sob Fulgêncio Batista. O pobre Schloime, que luta contra sua consciência, encontra apoio em sua mulher. Circunstâncias de brigas de gangues fazem com que assassinem quase toda a família de Laibl, seu pai, seu tio, e mais duas pessoas. Estavam em uma América sem lei e sem proteção, dos anos da década de 1930. Ele se sente frustrado por não vingar a morte do pai e vai morar com sua jovem esposa em New Jersey. Mais uma fatalidade aguarda nosso herói: sua mulher morre de câncer no seio, deixando-lhe uma apólice muito alta, para que ele prossiga sua vida. Com o tempo, resolve fazer uma viagem de navio, com o intuito de conhecer novos países e novas culturas. Embarca em um navio que iria para o Caribe e América do Sul. Lá conhece Rachel, uma jovem inteligente e astuta, divorciada, que se tornaria sua amiga e depois namorada. A viagem duraria três meses, tempo suficiente para reflexão, estudo, e conhecimento sobre esta jovem, que era uma feminista e lutava pelos direitos da mulher. Ela era filha do capitão do navio e durante a viagem, com turbulência e percalços, Rachel vai explicando-lhe a história e costumes desses povos caribenhos e latinos. Ele observava todos os atos do comandante e tentava gravá-los em sua mente. Era um homem justo e pragmático. Rachel, sabendo de seu problema de identificação com o tio ou com o pai, sugere que ele ponha no papel seus sentimentos, que isso o ajudaria. Os jovens percebem que devem apoiar-se para enfrentar suas dificuldades. A embarcação ruma para o Caribe, depois Honduras e Nicarágua e América do Sul. “Deslizando suavemente, o navio entrou na placidez do Rio da Prata.” Laibl, depois de muito tempo no mar, em terra perde o navio e terá que continuar a viagem sozinho até Santos. Em um navio brasileiro segue viagem. Zarparam de Porto Alegre. Conversas sobre política são trocadas. “A velocidade do navio foi reduzida ao mínimo. Estavam chegando ao porto de Santos...” Laibl coloca um dinheiro, em um envelope, para Jacob, que lhe fora tão honesto e o ajudara, durante essa viagem. “Rachel e sua mãe viram-no no caís e gritaram seu nome..” A embarcação ficou mais dois dias em Santos. Rachel lera os escritos de Laibl e gostara deles. Prosseguem para o Rio de Janeiro. Laibl teme estar sendo perseguido e só consegue sentir medo! Ele gostava cada vez mais da jovem. A embarcação agora chega a Recife. Durante cento e cinco dias navegaram pelo mar, e agora circundavam a Estátua da Liberdade em direção ao cais. Rachel encontra, no desembarque, com seu ex-marido, mas não quer mais nada com ele. Pouco depois recebe um bilhete de sua ex-sogra dizendo que ele se matara por sua indiferença. Ela fica totalmente arrasada, mas lendo o diário de Laibl encontra algum conforto e o seu centro volta a equilibrá-la. Laibl, finalmente, chega e o casal vai direto para a Broadway, lugar predileto de seu amado, para jantarem sozinhos. “Felizes para sempre?... Talvez... Mas oniricamente felizes enquanto pudessem navegar a vida em busca de rumos.”

UMA LOJA IMACULADA

O adjetivo do título refere-se, literalmente, a conotação de sem mancha ou pecado. Essa novela gira em torno de um judeu polonês, Moisés, e sua família. Morava no bairro do Bom Retiro e gostava de ficar sentado nos bancos do Jardim da Luz, rememorando seus dias de juventude passados em Varsóvia. O Tietê daqueles anos 30 parecia-se com o Rio Vístula, na Polônia. Era um homem saudosista. Possuía uma lojinha, onde vendia de perfumes baratos a roupas de cama e mesa, e com ela formara seus três filhos em cursos universitários. Seu lema era: “Compro tudo à vista e só vendo à vista.” Gostava de rememorar os velhos costumes judaicos. Pensava em sua Varsóvia e na história da perseguição de seu povo, pois “tanto os judeus como poloneses eram vítimas dos caprichos dos czares e dos pseudogovernantes.” Ele e sua mulher, Fany, almoçavam na loja, comendo o que ela preparava em casa. Com o tempo deixa-lhe os cuidados do comércio e o negócio transforma-se em uma distração para o velho casal. Com o passar dos anos, a loja foi diminuindo, devido ao aparecimento de grandes redes, restando somente uma porta. Moisés lembrava-se da democracia proposta na Polônia, que não vingara. Era um homem culto, pois havia freqüentado uma escola laica e pudera estudar; já Fany não. Os poloneses haviam tentado resgatar uma fraca democracia com ucranianos, bielorrussos e alemães. Porém tudo acabou com um golpe de Estado de Pilsudsky, que apesar de todos os horrores cometidos, antes de morrer havia homologado uma constituição, em 1935, na qual considerava a Polônia “patrimônio de todos os cidadãos.” Após sua morte o anti-semitismo continuara existindo ainda em piores condições. O casal encontrava-se bastante idoso, contudo cultivavam uma rotina de trabalho. Um dia chega a eles uma senhora chamada Lolita, a qual mantinha um bordel, para horror da velha senhora. Lolita gostaria de fazer negócio com eles através de suas “meninas”, comprando calcinhas atraentes por um baixo custo. Relutando muito, concordam e a lojinha prospera. Isaac, seu filho economista que fabricava as calcinhas, em uma ocasião, o procura pedindo que esconda documentos e livros de um amigo comunista que precisava fugir do Brasil. Seu pai novamente reluta com uma situação ilegal, mas concorda, pensando em fazer uma boa ação. Para despistar esse material, seu filho o mistura com livros e revistas pornográficos. Curioso, uma feita, Moisés resolve abrir um dos pacotes e fica transtornado com o filho, mais ainda por saber que as revistas pertenciam ao neto. Isaac não sabia ser pai. Nesse ínterim, Lolita volta e encomenda mais duas mil calcinhas e garante que gostaria de comprar a lojinha. Moises está feliz, porque as coisas correm bem e pensa que Deus perdoou seus pecados. Mas como todo bom judeu precisa de alguma culpa, decidindo procurar um rabino que o ajude com sua consciência e angústia. O movimento crescera tanto, que fiscais, que antes não entravam no recinto, decidem analisar os livros fiscais. Vários livros empoeirados estavam na ponta do balcão e pensando tratar-se dos documentos desejados, querem examiná-los, pois material pornográfico aquilo não poderia ser, riram os dois. “Moisés temia que abrissem um dos pacotes com material comprometedor.” Quando Fany abre um deles, depara-se com fotos obscenas, e grita desesperadamente. Desta vez estavam salvos, mas deveriam pagar uma autuação e, além disso, a loja seria lacrada. Seu filho decide subornar os fiscais que bem conhecia. Entretanto Moisés passa mal e é levado ao Hospital. Moisés morre... Mas antes pedira a sua mulher que cuidasse do neto e das netas para que crescessem como verdadeiros judeus honrados. “Lolita comprou o estoque, o ponto e o prédio, tudo à vista, e ainda se comprometeu a pôr em ordem a parte fiscal.” Isaac ao ouvir falar em livros fica desesperado, quer ele mesmo pegá-los. Mas ficamos sabendo que Lolita tem um irmão comunista, que mora na Alemanha Oriental. Ele não gosta dela por ter um negócio ilícito, que a fazia enriquecer com pouco esforço e muita astúcia. Assim mesmo ela o ajudava através de sua mãe, que morava em uma chácara no sul de Minas. Atraindo a confiança de Isaac, compromete-se a levar o material subversivo para a casa da mãe. O assunto, agora, gira em torno do contraditório no comportamento humano. Finalmente ela declara: “portanto, o senhor confirma que agimos dentro de certas circunstâncias, nos limites de uma realidade que se impõe, e assim podemos justificar nossos atos e amainar nossa consciência.” Era uma verdade. Apesar disso, o economista não sossega e não consegue dormir pensando que poderia ser denunciado e preso. O tempo mostra que estava correto em confiar em Lolita. O desfecho inesperado da estória mostra bem o humor e o sentimento judaicos.


Carlos Frydman nasceu em Varsóvia, Polônia, em 15 de novembro de 1924. Foi membro do Partido Comunista de 1942 a 1958. Viajou pela Europa, morou em exílio e escreveu poesias para jornais. Publicou Os Caminhos da Memória e Sintonia. É conhecido também pela sua humanidade e amor às pessoas.
[1]Eu sou Golem. 1- Ser artificial mítico ligado ao Judaísmo e à Cabala. Como Adão todos os golems são provenientes da argila, lama. 2- Pessoa santa.
[2] Tratado filosófico-religioso hebraico.
[3] Desastrado, sem sorte.
[4] Bedel da sinagoga.

Um comentário:

caixadagua33 disse...

Olá Regina, gostei muito do resumo que você fez do livro do Carlos. Ele é uma pessoa que ainda tem muito a dizer. Tem uma vida política e social intensa. Participa do Mutirão Cultural orientando leitores. Além disso é simpatissíssimo. Obrigada. Um abraço, Marcia