quinta-feira, 9 de junho de 2011

O CRIME DO PADRE AMARO - (1875)



EÇA DE QUEIROZ



Esse espetacular romance realista do século dezenove, escrito por um dos maiores expoentes da língua portuguesa, nos traz muitas surpresas. A começar pelo estilo e sua narrativa. Trata-se de uma ácida crítica ao clero (em especial ao celibato), ao regime governamental da época e à hipocrisia humana, especialmente entre religiosos, beatos, governantes e seus seguidores. É um romance que desperta interesse mesmo nos dias de hoje. Eça apossa-se de dois personagens frágeis, o padre Amaro e a menina Amélia, para, em torno deles, desenhar a cultura portuguesa, em detalhes, e seu efeito nefasto sobre seus cidadãos. Amaro Vieira era um garoto pobre, nascido em Lisboa, filho de criados de um marquês. Cedo fica sob a tutela da marquesa viúva e é criado em um ambiente muito religioso e feminino. Sem vocação nenhuma para o clérigo, é obrigado a seguir esse caminho, mas nunca se conformará com ele, pois é como uma prisão em que não se pode ser livre. Chega à cidade de Leiria ainda jovem, bonito e inteligente, para substituir o pároco que morrera. Fora uma promoção ajudada por pessoas influentes. A cidade se encanta por Amaro, que passa a freqüentar a Rua da Misericórdia com seus convidados importantes, onde uma família o recebe como hospede. Sra. Joaneira, sua locadora, tem uma filha muito jovem, criada em um ambiente estritamente religioso e sem parâmetros com a realidade, pois vivia cercada de mulheres idosas e padres. Amélia apaixona-se por Amaro e é correspondida. A partir desse momento começam as dúvidas de consciência e retidão para ambos. Amaro, contudo, percebe que o clero não segue sua doutrina e suas regras, mas beneficia-se delas sem nenhum escrúpulo. Amélia também é atingida pelas mesmas angústias, mas ainda tem o trunfo de não ser uma religiosa e poder delinear, até certo limite, seus desejos sexuais. Desenrola-se entre eles um amor, ou melhor, um desejo implacável, que os faz perder a medida das situações e a se exporem desnecessariamente aos mexericos da cidade. Permeando os fatos que ocorrem, Eça de Queiroz pincela com cores muito fortes o pensamento retrógado e individualista do clero e do poder português, permitindo que ora nos indignemos e ora gargalhemos pela comicidade das teorias absurdas para explicar esses atos à sociedade e a si mesmos. Amaro, com o convívio delituoso dos padres, vai se tornando uma vítima da situação que fora obrigado a seguir. O pároco transforma-se em um homem totalmente inescrupuloso, causando a perda e o fim da jovem Amélia, desprovida de preparo para encarar uma situação tão dramática quanto a que acaba se envolvendo. Seu despreparo para o mundo faz com que ela trilhe um caminho que não poderá suportar. Os aristocratas, políticos, sacerdotes e burgueses configuram um quadro de decadência e ruptura com a modernidade e a democracia. Podemos, em vários trechos, espelharmo-nos na sociedade portuguesa daquele século e descobrirmos a razão de certos hábitos ainda persistentes em nosso meio. Segue alguns trechos do livro – (Amaro e Amélia passariam a se encontrar com ajuda de um sineiro e um padre) 1- “Encontravam-se todas as semanas, ora uma ora duas horas, de modo que as suas visitas caridosas à paralítica perfizessem ao fim do mês o número simbólico de sete, que devia corresponder, na idéia das devotas, às “Sete Lições de Maria”. 2 - “Foi aquele o período mais feliz da vida de Amaro. “Ando na Graça de Deus” pensava ele às vezes à noite, ao despir-se...” 3- (Amélia) “Ajoelhava-se então aos pés da cama, arremessava orações sem fim para Nossa Senhora das Dores, pedindo que a alumiasse... Mas Nossa Senhora não respondia. Não sentia como outrora descer do Céu às suas orações... Ao entrar na igreja não rezava, com medo dos santos.” 4- “Que é isso padre-mestre?” Ele responde a Amaro: “É a maroteira das maroteiras! É a infâmia!... O senhor desencaminhou a rapariga! Isso é que é uma canalhice mestra! 5- (Senhora Joaneira, amante do cônego, dizendo que o reino de Deus era dos pobres) Responde o cônego: “Não, antes dos ricos... Que o céu é para os ricos; A Senhora não compreende o preceito Beati pauperes, bendito os pobres... quer dizer que os pobres devem-se achar felizes na pobreza; não desejarem os bens dos ricos; não quererem mais que o bocado de pão que têm... sob pena de não serem benditos.” 6- “Aquela paixão, em que estava abismada e que a saturava, tornara-a estúpida e obtusa a tudo o que não respeitava ao senhor pároco ou ao seu amor.” 7- “Diabos levem as mulheres, e o Inferno as confunda! – disse surdamente Amaro” 8- “Vinha-lhe, agora, sob a impressão fúnebre que se exalava da casa, o pressentimento que morreria de parto... e ali ficava rezando, pedindo a Nossa Senhora que não lhe recusasse o Paraíso...” 9- “Havia de tratar Amélia como uma sombra e fugir-lhe para ser seguido... - E o resultado delicioso ali estava – três páginas de paixão, com manchas de lágrimas no papel.” 10- “Foi então que Gertrude apareceu comovida... – Ai senhor abade, pobre criaturinha! ... Eu não sei quem é o pai, mas o que sei é que nisso tudo anda um pecado e um crime!... O abade não respondeu, orando baixo pelo padre Amaro.” 11- “Nos fins de maio de 1871 havia um grande alvoroço na Casa Havanesa, ao Chiado, em Lisboa. Pessoas esbaforidas chegavam... Tudo perdido! Tudo a arder!... Toda uma gralhada de vozes impressionadas, onde as palavras “Comunista! Versailles! Petroleiros! Thiers! Crime! Internacional!” voltavam a cada momento, lançadas ao furor, entre o ruído das tipóias e os pregões dos garotos gritando “suplementos”... os episódios sucessivos da insurreição batalhando nas ruas de Paris.” “O Chiado lamentava com indignação aquela ruína de Paris.” 12- “Sujeitos, palitando os dentes, decretavam a vingança. Vadios pareciam furiosos “contra o operário que quer viver como príncipe”. Falava-se com devoção na propriedade, no capital.” 13- “A verdade, meus senhores, é que os estrangeiros invejam-nos... E o que vou a dizer não é para lisonjear a Vossas Senhorias; mas enquanto neste país houver sacerdotes respeitáveis como Vossas Senhorias, Portugal há de manter com dignidade o seu lugar na Europa! Porque a Fé, meus senhores, é a base da ordem!”E assim, com muito humor e senso de realidade, Eça de Queiroz nos deleita com sua agudez e espírito de crítica inigualáveis.

Eça de Queiroz (1845-1900) é considerado o maior romancista da prosa realista portuguesa e o mais popular do século XIX em Portugal. É uma referência em todo mundo.