segunda-feira, 9 de novembro de 2009

AS BRASAS DE SÁNDOR MÁRAI







Fazia muito tempo que o general não abria sua correspondência, pois seu empregado encarregava-se disso. Um dia recebe uma carta e reconhece imediatamente a letra. Ao lê-la, enfia no bolso e pede a Kálmán que traga seu hóspede na melhor carruagem e a Nini, sua velha ama, para que prepare um jantar pomposo no salão principal do castelo. Fazia quarenta e um anos que esperava por uma notícia do remetente. A última caçada juntos fora em dois de julho de 1899. Nini tinha agora noventa e um anos e fora sua ama de leite. Era muito jovem quando perdera seu filho e amamentara aquele menino doentio. O general, que agora raciocinava em décadas, estava com setenta e seis anos. Pede a Nini que não se emocione, pois Konrad voltara. Nini e o general conheciam-se profundamente. “nenhuma palavra podia definir a relação entre eles.” Era verão, tudo “zunia e fermentava” e ele pediu que lhe preparassem um banho frio. Havia passado uma vida a espera desse momento de vingança. Tudo era lembrado, mas estava desbotado como “essas fotografias de um passado distante.” Lembra-se do pai, capitão da Guarda, que trabalhara como adido na embaixada Austro-Húngara em Paris e da mãe, uma sensível condessa francesa, que largara tudo para segui-lo até sua terra Natal. “Mudara-se para aquele país oriental porque em seu espírito a paixão fora mais forte do que a razão e o bom senso.” Eram muito diferentes, mas se amavam. Seu mundo era seu castelo, cercado de montanhas e florestas. O castelo, agora, guardava “a memória dos defuntos... as maçanetas das portas conservavam o tremor das mãos...” Quando tinha oito anos, o general foi com a mãe para um castelo à beira mar da família francesa, na Bretanha. “Já se viajava de trem, muito vagarosamente.” Em Paris, sua avó o recebe, “mas tudo tinha um cheiro insuportável e o menino começou a sentir enjôo.” Finalmente ele adoece, pois precisava de afeto e decide morrer! Na Bretanha, a condessa manda que Nini venha e ele melhora. Confessa-lhe que queria ser poeta como o pai, mas ela declara que será um soldado exatamente como seu pai. O garoto foi matriculado em um colégio militar nos arredores de Viena. Lá “cada coisa estava solidamente em seu lugar, como se ali fosse o único local do mundo onde tudo o que na vida é caótico e supérfluo estivesse finalmente arrumado e em ordem.” Konrad dormia ao seu lado e ambos tinham dez anos. Konrad era robusto e magro e tinha um ritmo moderado. Sua expressão era típica de eslavos. Seus pais viviam agora na Galícia, eram nobres, mas muito pobres. Esses meninos viveram sempre juntos e possuíam uma “amizade silenciosa”, destinada a durar a vida toda. Esse sentimento continha “certa dose de pudor e de culpa...” Henrik era longilíneo e tinha problemas nos pulmões. O pai vai visitá-lo e passam uma temporada juntos em um hotel. “O garoto se sentava ao lado do pai, calado, com os bons modos de um velho...” O menino queria apresentar-lhe seu amigo e o pai o recebeu como se fosse seu amigo também. Na adolescência esses garotos sentiam-se seguros, pois tinham um ao outro. Passaram o verão juntos na casa de Henrik e sua mãe exclama, ao partirem: “Finalmente um casamento que deu certo.” Porém Nini não sorri. Descobriram todos os segredos dessa época juntos, mas o relacionamento era angustiado. Henrik tinha orgulho de Konrad e lhe era muito afeiçoado, mas Nini prevê que um dia ele o abandonaria. Konrad, pudico e sério, pede ao amigo que levem “uma vida casta”. O filho da condessa era mais inteligente e tinha uma memória genética das coisas, contudo Konrad era mais rígido e respeitador de todas as regras. Aos vinte e dois anos vão visitar os pais de Konrad e ele observa o sacrifício desses pobres nobres. Um relato muito pungente de suas vidas é narrado por ele e a carga pesada demais que carregava. Sufocado perdia a autonomia de sua própria vida. Konrad refugiava-se na música. No colégio não se falava dela, apenas era tolerada. “Konrad empalidecia toda vez que escutava. Qualquer tipo de musica, mesmo a mais vulgar...” Sua austeridade desfazia-se. Ela modificava tudo ao seu redor e o jovem não se sentia mais um soldado. Comparava a música à força de cavalos alados invisíveis, mas era um perigo. Tocando para os pais de Henrich, em um acorde a mãe reconhece a música do francês Chopin, que na verdade era parente da mãe dele. “Todos ficaram impressionados.” Contudo, depois da apresentação o oficial da Guarda afirma que ele jamais seria um soldado de verdade, pois era “um homem diferente”. Certamente com sua sensibilidade a flor da pele. Viveram juntos em Viena e Henrik intuiu que o amigo escondia-lhe um segredo. “Sempre sabemos qual é a verdade, essa outra verdade que se esconde atrás dos papeis que representamos...” Konrad era calmo e autodisciplinado, cumpridor de seus deveres, como se isso o salvasse de algo maior. Locaram um apartamento juntos e Konrad alugara um piano, mas parecia ter medo dele, talvez temesse a explosão que a música lhe causaria. Konrad vivia uma vida monástica, como se “não vivesse neste mundo”. Passava longo tempo sem sair à noite e quando Henrik voltava de suas festas e encontros, sentia que traia o amigo, ao ver a fraca luz do quarto ainda acesa. As músicas lânguidas dos salões não agradavam Konrad. Ao contrário, sua música despertava paixões e remorsos, fazia crescer um sentimento de vida mais concreto. Henrik era outro tipo de jovem, mais sociável, extrovertido e entrosado na sociedade vienense, porém mais artificial. O autor, Sándor Márai, fala muito de culpa quando se refere ao prazer. “Dançava-se todas as noites... Viena dançava sob a nevasca.” Viena com diversos impérios: húngaro, alemão, tchecos, morávios, croatas, sérvios e italianos formavam um só núcleo e esse núcleo acreditava que apenas o imperador era capaz de manter a ordem. Konrad era intelectual, cerebral e gostava de discorrer sobre suas leituras. Henrik era social e falava da vida, era mais pragmático. Konrad, aos vinte e cinco anos, contava cada centavo gasto e assim envelhecia... A diferença entre os jovens “conferia a Konrad um certo poder sobre o espírito do companheiro.” Como todos que são solitários, o primeiro “falava da sociedade com um tom levemente irônico, meio depreciativo, mas involuntariamente curioso”. Sua figura era nostálgica e a voz “vibrava de desejos insatisfeitos”. Ambos possuíam dignidade interior em suas vidas. Verônica, a bailarina, e Ângela foram seus primeiros amores com todos os desejos, ciúmes e um sentimento de solidão.
Voltamos para o início do livro, quando o general prepara-se para receber seu velho amigo de infância. Tirou do armário seu uniforme de gala e condecorações, mas preferiu usar um sóbrio terno preto, com gravata de piquê branca. Penteou os cabelos brancos. A vida havia lhe dado coisas inúteis e deveres. Procurou alguns objetos que lhe eram sentimentais e enfiou no bolso um caderninho fino, forrado de veludo amarelo. A arma antiga pegou da gaveta. Com seus olhos “acostumados com as grandes distâncias”, percebeu que seu hóspede se aproximava. Dirigiu-se para a ala social do castelo por um corredor repleto de velhos retratos. Esses homens retratados eram viris e “quando sofriam uma decepção, refugiavam-se nos silêncio.” Depois vinham os retratos dos estrangeiros, parentes de sua mãe francesa. “Uma leve linha cinzenta formava uma moldura no fundo do branco e indicava que no passado ali houvera um quadro pendurado.” A ama o esperava. Nini oferece-se para recolocar o quadro, mas o general nega, pois isso não mudaria nada. Ele lembra-se, detalhadamente, da cena que ocorrera, naquele exato lugar, há quarenta e um anos. Estavam presentes o amigo, Krisztina e ele. Somente. Naquele dia longínquo haviam recebido “um sopro de vida que dera sentido às suas existências. E agora voltavam a viver, como um mecanismo a que se dá corda...” Sopas, trutas, lagostins, rosbife malpassado, salada e sorvete flambado seriam servidos. Igualmente como naquela noite tão distante. O general, detalhista, prepara tudo com esmero, pois queria de Konrad a verdade. Não a conhecera. Nunca. Nina revela que quando sua mulher estava agonizando evocara seu nome, apesar dele estar espiritualmente muito distanciado dela. Konrad, velho como o general, chega e deram um aperto de mãos. Observaram-se minuciosamente com “atenção lúcida.” Haviam chegado a essa idade com dignidade e energia. A esperança de se encontrarem novamente manteve os dois velhos vigorosos. Konrad vivia, agora, nas cercanias de Londres. Havia morado em Cingapura. Contudo os trópicos tiravam o viço das pessoas, mas não o dele. Konrad senta-se na mesma poltrona de outrora e o velho caçador “vê enfim a caça presa na armadilha.” Seu amigo fora para lá com a intenção de matar alguma coisa dentro de si. Chegara aos trópicos com 34 anos e as dificuldades foram imensas. A região era pantanosa e terrivelmente quente. No final de alguns anos o homem sentia-se com raiva e mataria qualquer um que se aproximasse dele. As mulheres malaias eram belíssimas, mas impossível de se acostumar. Os ingleses, belgas e franceses depois de cinco anos no país também se tornavam embrutecidos. Lá há paixões de todo tipo e um “europeu que vem do trópico já não é mais um europeu qualquer, isso é certo” comentou seu amigo. (A mesa de jantar está servida e o cenário é maravilhosamente descrito, com suas cores, louças, pratarias e muitos outros detalhes). “No meio da mesa comprida decorada de flores e iluminada a velas, de costas para a lareira, há outra poltrona forrada de gobelin. Aqui, no passado, era o lugar de Krisztina, a mulher do general.” Os talheres eram de requintado vermeil. Os dois homens falavam aos sussurros. Konrad viera porque estava em Viena e queria ver o general, que não havia mais visitado por quarenta e um anos. Afirma que não tinha mais nada a tratar com o amigo, mas queria vê-lo antes de morrer. Lembrou-se que adorara Viena na juventude e que a cidade era como um amigo. “A música e tudo o que eu amava em Viena vibrava nas pedras, no olhar e na cortesia dos homens...” Quando voltou, encontrara uma cidade mudada, a que o general respondeu: “Aqui entre nós quase nada mudou.” Permanecera no serviço militar, mas havia pensado em se desligar. Fora amadurecendo e ficando obstinado. Foi para a reserva com pouco mais de cinqüenta anos, na época da revolução em 1917. Konrad estivera, durante essa época, trabalhando nos trópicos com cules chineses e malaios, pela segunda vez. Sabia que a guerra espalhara-se por todo o mundo, mas lá não tinha qualquer noticia. Um dia, porém, os dóceis cules pararam de trabalhar e se transformaram em chineses, reivindicando melhores condições de vida e trabalho. Só então ficou sabendo da revolução russa e que um homem chamado “Lênin retornara ao país num vagão chumbado, levando na bagagem o bolchevismo.” É possível que Konrad tivesse intuído a morte de Krisztina. Ela não estava sentada à mesa, só poderia estar na sepultura. O general concorda. Morrera oito anos após a partida do amigo. Teria agora setenta e três anos. Morrera de anemia perniciosa, uma doença rara na Europa, mas muito comum nos trópicos. Konrad havia pensado em voltar e lutar também, mas já era um cidadão inglês. Henrik observa que “não se pode mudar de pátria em nenhuma hipótese. Só se pode mudar de documentos.” Para Konrad a pátria era a Polônia e Viena, aquela casa, o quartel, a Galícia e Chopin. Tudo isso se fragmentara. A “pátria para ele era um sentimento.” O vinho que bebiam era “o passado”, 1886, ano em que Henrik prestara juramento de fidelidade ao imperador e nada mais restava. “Agora é um vinho velho.” Conclui o general. Depois de esgotarem os assuntos principais, a conversa se ameniza e o general confessa que todos esperavam seu retorno, inclusive Krisztina, mas ele sempre fora uma pessoa extravagante. Só a música importava-lhe. Henrik considera que com a velhice só nos lembramos de fatos importantes, o resto não tem mais importância. Durante o último jantar os três estiveram presentes. “A memória filtra tudo de uma forma inacreditável”, afirma. Konrad conta-lhe que o olhar das malásias tem a violência de um contato físico e a insistência de uma carícia. Lá se bebe muitíssima aguardente e se fuma tabaco doce. A chuva é intensa e penetra em tudo, e “depois chega a estiagem, que lembra um cintilar vaporoso. Nessa toada, a gente envelhece depressa.” Agora estavam comendo rosbife malpassado, “mastigando bem, com a voracidade e a concentração dos velhos”, pois para eles isso era “um ato ancestral e solene.” Seu avô costumava por à frente de cada convidado uma pinta de vinho, ou seja um litro e meio, para que bebessem a vontade. Os “vinhos de qualidade eram servidos à parte.” Recorda-se do momento em que tocara a Fantasie Polonaise com sua mãe. Konrad nunca mais a tocara. Levantam-se e seguem para outro recinto, a fim de tomarem café. Ai havia um piano de cauda e três poltronas.
“Já não nos resta muito tempo de vida, diz o general de repente, como se tirasse as conclusões de uma conversa muda.” Existe uma força que “nos obriga a viver... O homem vive enquanto tem alguma coisa a fazer nesta terra... A solidão também é uma realidade muito singular...” O general passa a contar a Konrad sobre seus quarenta e um anos de distanciamento, na solidão. Que também se parece com a selva. Ele declara que um segredo como o que permanecia entre eles tem uma força particular. Preparara-se para esse momento como quem se prepara para um duelo. “e treina todos os dias, como fazem os espadachins profissionais.” Treinara graças às recordações, a solidão e ao tempo. “Mesmo sendo um duelo sem espadas, vale a pena preparar-se até o fim.” O hóspede concorda totalmente com ele. Lembra-se do que o pai falara a Konrad: “Você é amigo do meu filho. Honre esta amizade.” A honra para aquele homem era o mais importante, pois ela e a amizade eram a mesma coisa. O general reflete sobre esse sentimento e conclui que a às vezes a amizade se funda na simpatia e que esta é branda demais e talvez não “seja suficiente para levar duas pessoas a se responsabilizarem uma pela outra nas situações mais críticas de suas vidas.” (Esta reflexão é uma das mais verdadeiras deste extraordinário livro.) Ele continua a narrativa dizendo que a amizade é o relacionamento mais nobre entre os seres humanos. Desapontado diz nunca ter visto uma amizade sincera e que “as simpatias que vi nascer entre os homens sempre naufragaram, no final, em pântanos de egoísmo e vaidade.” Confunde-se, às vezes, confidências com amizade. Não, é para fugir da solidão! “E se um amigo nos decepciona porque não é um amigo de verdade, será que podemos acusá-lo, jogar-lhe na cara o seu caráter, a sua fraqueza? Quanto vale uma amizade que ambiciona ser premiada? Será que não temos o direto de aceitar o amigo infiel exatamente como o amigo fiel e cheio de abnegação?” Ele investigara em seus livros antigos e em sua alma sobre a verdade. Isso lhe ensinou “que não temos o direito de exigir franqueza e fidelidade absoluta de quem escolhemos como amigo...” Analisa profundamente, sobre a DÍVIDA e a FUGA. Durante os vinte e quatro anos em que foram amigos equivalera ao período mais belo da vida de Henrik. Ele não entendia a ofensa feita a ele, pois após aquele jantar havia desaparecido para sempre. O general fora procurá-lo em sua casa, para onde nunca fora convidado, e a encontrou vazia. E “a única coisa que nos separava, em nossa juventude era o dinheiro” concluiu. “Os pobres de origens nobres não perdoam.” Sua casa não era grande, mas possuía a magia da mão de um artista. Ele fora um soldado, deveria ter vivido em profunda solidão entre eles. Entre quadros, tapetes, móveis e objetos de arte observou, no grande piano, um vaso de cristal com três orquídeas, que só se cultivavam nas suas estufas. Konrad era um artista e havia criado algo especial entre seus livros e móveis raros. Cruzando os braços o general acrescenta: “Aquela casa era como o disfarce de alguém.” E foi exatamente nesse momento que Krisztina entrou. Henrik tinha várias indagações: quem era o amigo ou quem fora fiel ou infiel. “O que importa é que no final cada um responde com a própria vida.” A outra indagação era a natureza da relação entre os dois amigos. Quer saber que pressentimento o impeliu àquela casa naquele momento. Todos sabiam, até Nini, mas se calaram. Relembra a caçada daquela manhã. “O homem mata para defender alguma coisa... mata para se vingar de alguma coisa...” Konrad era um artista e será que possui tais sentimentos? Henrik havia estado no Oriente com sua mulher durante a lua de mel. Ficara com uma família árabe de grande nobreza de espírito. Notara que a altivez dessas pessoas, seu comportamento digno, a paixão e a calma, a disciplina, a segurança dos gestos, tudo isso refletia “uma nobreza de velha cepa, essa nobreza especial...” Notara também que tudo era limpo e fresco e a mais humilde pessoa possuía dignidade. “Aquela inércia digna que esconde o prazer de viver e as paixões”... Seu anfitrião degolara um carneiro, mas o ato de matar estava ligado a um “significado simbólico, religioso, ligado a algo essencial: a vítima.” Fora assim que Abraão levantara a faca sobre Isaac. Esse procedimento era muito usado na Antiguidade e, no Oriente, ele ainda era repetido nas mãos de cada homem. No Leste os indivíduos ainda conheciam o significado sagrado de matar e “seu significado erótico oculto.” Para os europeus o assassinato era “um ato jurídico e moral ou um problema médico...” “Ainda assim a caçada representa um sacrifício, um reflexo imperfeito de um rito religioso antiqüíssimo...” essa é a sensação que tem um animal que busca sua presa. “E é a que você também sentiu, talvez ela primeira vez na vida, quando justamente no bosque, levantou a arma e a apontou para mim com a intenção de me matar.” Henrik compreendera que por vinte e quatro anos Konrad o odiara de forma tão apaixonada, que tinha a “mesma força e o ardor das relações amorosas.” Konrad o odiara desde meninos e, no entanto era o mais culto e o mais virtuoso em todos os campos de conhecimento. “Era da raça de Chopin”. Há o desejo de sermos diferentes do que somos, mas é preciso nos conformar. Aceitarmos todos os nossos defeitos e fraquezas que nunca serão corrigidos, mesmo com muito esforço. Compreendermos nossos sentimentos não correspondidos. Tudo isso Henrik aprendera em sua solidão no meio do bosque! (Foi uma profunda tomada de consciência, realizada por exaustão e determinação). Henrik confessa que a velhice amplia os detalhes e os põe em foco. Konrad desprezava seu carisma, mas o invejava ao mesmo tempo. Sua ingenuidade e confiança nos seres humanos os atraiam para ele, na forma de benevolência. A amizade entre dois homens incluía uma aliança implicitamente concluída. O que Konrad fizera no bosque tinha muito a ver com a caça, pois isso deveria ter sido elaborado anteriormente. Terminara a ilusão da adolescência e a nova relação era ambígua e complicada. No passado, apesar de tão diferentes, eram ligados e se completavam mutuamente. “Eram amigos e não simples companheiros...”, pois se isso não fosse verdade Konrad não teria voltado tanto tempo depois. “Nem a morte consegue apagar a amizade nascida na infância.” Acreditava que quando levantou a arma para matá-lo a amizade estivesse mais viva do que nunca. Depois de apontá-la, lentamente a havia abaixado. Saíram do local e o silêncio de Konrad era um reconhecimento de sua intenção. E na noite daquele mesmo dia, ele apareceu para o jantar. Naquele anoitecer Krisztina estivera presente. Ela estava absorta lendo um livro que descrevia uma viagem aos trópicos. Ao deparar-se com o marido, o olha perplexa. Olhava-o como querendo adivinhar seus pensamentos e se ele saberia da verdade. Nesse momento resolve calar-se para sempre sobre o ocorrido. Ninguém jamais saberia! Mais tarde, vem a saber que ela havia encomendado aquele livro, junto com outros sobre o mesmo tema. E o círculo se fecha.
O livro fora um sinal da traição das pessoas que mais amava. Isso significava que ela queria ir embora, porque não era mais feliz naquele lugar. Desejava uma vida diferente. Konrad pertencia a uma raça diferente. “Quem é parente de Chopin não pode ser músico impunemente.” Henrik vai procurar o diário encadernado de amarelo, mas ele sumira. Ela insistira que ele lesse suas anotações, mas Henrik sentia-se constrangido com essa persistência. “Com tanta veemência na sinceridade é porque tem medo”. Medo dos segredos inconfessáveis! Krisztina lhe era grata, mas nunca fora apaixonada. Henrik fez uma retrospectiva daquele dia para Konrad. Depois do jantar, o amigo os deixara. O general resolveu ir a casa dele, no dia seguinte, para perguntar-lhe... O que? As palavras valeriam bem pouco. A jovem, quando encontrou o marido na casa de Konrad, dissera que ele era um covarde por ter fugido. Ela despede-se da casa e dos objetos familiares, olhando altivamente para a cama turca. No olhar não há curiosidade, pois aquele esconderijo tão especial era seu lar. Assim, sai sem dizer uma palavra. No olhar do empregado que o recebera há uma infinita compaixão. Queria saber do amigo quando teve início a traição e qual a sua própria responsabilidade e culpa nisso tudo. (Sem dúvida era um homem sábio, honrado e justo). Konrad era amigo de Krisztina desde a adolescência, então porque lhe apresentara? Continuou seu raciocínio, dizendo que “o homem e seu destino se realizam reciprocamente, moldando-se um no outro”. O destino não se introduz sozinho, mas entra por alguma brecha deixada aberta deliberadamente. Krisztina, Konrad e sua mãe eram muito diferentes de Henrik e seus sentimentos pelos três eram os mesmos! “E ,assim como as pessoas que pertencem ao mesmo grupo sanguíneo são as únicas que podem doar sangue a quem é vítima de um acidente, assim também um espírito só pode socorrer outro se não for diferente dele...” Krisztina, formada de tantas raças diferentes, era orgulhosa de sua “fantástica independência de espírito”. O general admirava “a paixão, o orgulho, a consciência soberana de seus sentimentos indomados”. Ela sentia-se confortável no mundo. Era parte dele. Considerava a vida uma graça suprema. Quando Konrad partira para os trópicos eles nunca mais se falaram e ele se transferiu para o pavilhão de caça. Henrik odiava a música, não a compreendia e sentia que a melodia possuía algo de imoral dentro dela. Uma vez, com cinqüenta anos, e todos os entes queridos mortos, aproximara-se do pai de sua esposa e lhe contara tudo. Hoje, sobraram apenas Konrad, Henrik e Nina. Eram, sem dúvida, os mais fortes. No fundo do coração do general, o que ele encontrou, após duas guerras e demasiado desejo de vingança? “Uma paixão que o tempo apenas atenuou sem conseguir extinguir suas BRASAS.” Sua vingança era o retorno do amigo, vindo de tão longe. Agora ele lhe responderá. “A sala com os dois velhos está quase no escuro.”
Não queria mais saber sobre a traição ou sobre o quase assassinato. Disso tivera provas cabais. Não mais lhe interessava, pois já fora respondido pelo tempo. Pondera que a razão e o sentimento devem sempre andar juntos. Quer somente a simples verdade. Que valor tem, no final da vida, certos detalhes doloridos que já se passaram? “Quando exigimos fidelidade, como podemos querer que a outra pessoas seja feliz?” Como o passar dos anos até a vaidade ferida e a raiva desapareceram. Henrik havia se fechado no pavilhão de caça e passou oito anos sem rever sua amada Krisztina. Somente a verá depois de morta. Ela estava doente e fora tratada pelos melhores médicos, mas, com sua dor, decide morrer e atinge seu desígnio. O general esperara por oito anos uma mensagem de sua mulher. Mas Krisztina nunca veio! Também ela havia sido ferida pelos dois homens: um fugira e o outro se trancara para sempre. Ela respondera a seus atos com a morte, que “dá repostas claras e completas.” Só restava a Henrik compreender a realidade. Expõe que aos homens “pouco importa o que façam, são apenas criaturas mortais.” Primeiro ocorre o envelhecimento gradativo do corpo. “E então, de repente, sua alma envelhece... a alma ainda é movida por desejos e recordações... Quando desaparece esse desejo de alegria, só restam as recordações e a inutilidades das coisas; nesse estágio, estamos irremediavelmente velhos.” O tempo e o instante preciso são determinantes para certos atos. Konrad abaixara a arma e partira para os trópicos. Contudo, ele ainda queria saber se Krisztina tinha consciência de que ele queria matá-lo. Aquele instante fora precedido de premeditação e “lúcida reflexão?” Krisztina dissera: Era um covarde. Depois se fechou dentro de si mesma até sua morte prematura. Quer saber “covarde” em que sentido? Que plano havia falhado para que fosse um covarde? Henrik é um personagem que não se preocupa com detalhes, mas unicamente com o essencial para poder morrer em paz. Ele acabara encontrando o diário amarelo de Krisztina, mas nunca tivera a ousadia de abri-lo, apesar de ter sua permissão. Ele o oferece a Konrad, que não estica o braço para pegá-lo. Finalmente é jogado nas brasas da lareira, para que o fogo o destrua lentamente. Konrad que estivera na iminência de responder-lhe à pergunta crucial, ao ver o livrinho consumido às cinzas e às brasas cintilantes, nega-se a fazê-lo. O general estava quase indiferente. Já era aurora, e os velhos desgastados levantaram-se para se despedir. Já falaram tudo, só restara a Konrad partir para Londres. Não queria rever nada nem ninguém. Viveria na Inglaterra até morrer! O general solicita a resposta da primeira pergunta. Eles haviam sobrevivido à Krisztina e eram responsáveis por sua morte! Konrad havia se ligado à mulher de seu melhor amigo. “Não acredita que o significado da vida é simplesmente a paixão que um dia invade nosso coração, nossa alma e nosso corpo... e continua a queimar eternamente até a morte.” Pergunta-se: “A paixão é de fato tão profunda, tão má, tão grandiosa, tão desumana? Será que realmente é desejar uma pessoa específica, ou é apenas o próprio desejo?” Examinam-se longamente, “Konrad e o general despedem-se em silêncio, com um aperto de mão e uma profunda reverência.” Sentido-se mais calmo, o general, questionado por Nini, permite que reponha o retrato de Krisztina em seu lugar.

Nota - É bom desejar, você se sente vivo, mas pode ser também um sentimento ruim e dolorido. O melhor para viver é ser sereno e equilibrado. A felicidade vem, muitas vezes, devagar e se instala na sua alma para sempre. AMAR – esse é o melhor sentimento do mundo. É universal e seguro, bem diferente da paixão que muitas vezes não passa de um momento, um cintilar das brasas.

Sándor Márai (1900-1989) nasceu na hoje Eslováquia. Tornou-se um escritor húngaro, formando-se numa das antigas cidades do Reino da Hungria. Eram vilarejos fundados por imigrantes alemães desde a Idade Média tardia. Márai tinha múltiplas raízes que permitiam considerar-se em casa. Na biblioteca de seus pais havia romances de Goethe, Schiller, Petöfi, Arany, também, romances simbolistas franceses e livros de grandes romancistas russos. Entretanto, o elemento unificador foi o húngaro, sua língua materna. Com a destruição da Monarquia, transfere-se para Budapeste e estuda direito. Viajou pelo mundo e casa-se em 1923, mudando-se para Paris. No final dos anos 20, convenceu-se a voltar para sua terra natal. Voltou pelo apelo da língua. Instalou-se em Budapeste. Quando sua obra é premiada pelo sucesso, aparecem os primeiros sinais de um profundo mal-estar existencial, que nunca mais o abandonará. Isso inspira o longo monólogo do velho e rancoroso general de As Brasas. Quando o nazismo provoca uma nova onda de imigração para o Ocidente, resolve exilar-se dentro de sua própria casa. Ele sobreviverá sendo mais forte que todo o resto. Em 1948, quando a Hungria aboliu a democracia parlamentar, abandonou o país para sempre. Seus livros foram banidos da Hungria por 40 anos. Recentemente voltou a ter fama em seu país e no exterior. Sua vida tem muito a ver com o duelo de quarenta e um anos revelados em As Brasas. “O homem compreende o mundo um pouco de cada vez e depois morre”, disse Henrik.
Assim foi com o escritor, Sándor Márai.
Fonte: Marinella d’Alessandro